Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Abatido na curva de subida

Sob inspiração de publicações inovadoras, como Veja e Jornal da Tarde, as redações brasileiras efervesciam no debate em torno do futuro do jornalismo num período em que (anos 1970 e início dos anos 1980) os jornalistas tinham radares a indicar os caminhos mais seguros, isto nas críticas à mídia da coluna “Jornal dos Jornais”, de Alberto Dines, publicada semanalmente pela Folha de S.Paulo, e mesmo pelo JR- Jornal da Redação, que ficou conhecido como “Jornal do Raul”, na verdade um boletim com críticas às edições do Estadão escrito diariamente por Raul Bastos. Foi um tempo em que as redações pisavam no chão duro de suas limitações e inconsistências e eram incentivadas pelo que faziam de melhor.

O debate era alimentado de um lado pelas teorias que caminhavam juntas com o que chamávamos na época de “jornalismo interpretativo”, tão bem descrito pelo professor Mário Erbolato, de Campinas, e que na prática significava a contextualização das informações ou mesmo a apuração exaustiva de um fato, de todas as suas implicações, para que o leitor pudesse realizar a mais completa interpretação dos acontecimentos, com margem estreita para especulação. De outro lado, as discussões procuravam revelar os novos caminhos a serem trilhados pela mídia papel que já na fase da pré-internet começava a ser pressionada pela concorrência do jornalismo – em constante evolução – da TV e do Rádio. “A TV desperta o apetite do leitor e só o jornal será capaz de saciá-lo”, diziam os consultores da Universidade de Navarra, na Espanha.

A sobrevivência dos jornais – refletiam as redações – está na grande reportagem (exemplo mais contundente do jornalismo interpretativo) e principalmente na análise da tendência da informação, que, em outras palavras, significava apurar os fatos e acontecimentos a partir do ponto em que a TV – vítima do tempo – foi obrigada a parar. A TV divulgava – pensávamos – a queda de um ministro e os jornais do dia seguinte teriam por obrigação trazer o nome de quem iria substituí-lo e mesmo as prováveis mudanças nas ações e políticas daquele ministério.

Truques e ardis

O fim da década de 1980 trouxe a disseminação das novas tecnologias de informação e o debate sobre o futuro do jornalismo foi abatido na curva de subida, como diria o poeta Fernando Pessoa. As atenções das empresas de comunicação voltaram-se para o possível aproveitamento das oportunidades de negócio trazidas pelas novas tecnologias – TV a cabo, telefonia móvel, difusão de informações pela internet – e as redações se voltaram para as emergências dos novos processos industriais que, rapidamente, começaram a passar pela informatização das últimas etapas da produção da notícia. O desafio de entregar os jornais a cada dia mais cedo nas bancas e a assinantes afunilou o processo de produção da notícia transformando-o numa espécie de Noite dos Desesperados. As redações perderam suas históricas características de escola de jornalismo e os jornalistas foram tolhidos de sua capacidade de pensar no futuro da profissão. Desapareceu o tempo necessário para reflexão. O debate, a inteligência aplicada ao jornalismo, a descoberta de novos caminhos, foram tragados pelas emergências do processo industrial.

Entre o final da década de 1980 e o decorrer da década seguinte, de 1990, a grande novidade foi a implantação do projeto da Nova Agência Estado, liderada por Rodrigo Mesquita, e que implantou o realtime no Brasil e advertiu o jornalista que teria de começar a escrever para mercados. A Agência Estado ultrapassou em dez anos o patamar de R$ 100 milhões de receitas, totalmente obtidas com a venda de informações para mercados.

Foi no início dos anos 1980 que eu, representando os jornais Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde, e Valério Fabris, representando a Gazeta Mercantil, viajamos à fronteira tripartite (Brasil, Paraguai e Argentina) para cobrir uma tal Conferência Atlântica, que se realizava num hotel de luxo junto às cataratas do Iguaçu no lado argentino. Só quando lá chegamos é que fomos descobrir que os realizadores do evento não desejavam e não admitiam cobertura jornalística. Mesmo assim abrimos contato com uma espécie de porta-voz do evento, um americano pouco simpático que trajou nos cinco dias de duração da Conferência calça e camisa de um amarelo esquálido, quase invisível. Nós o apelidamos de “Canarinho”. Passou os cinco dias do evento inventando truques e ardis para despistar os dois jornalistas que se recusavam a perder a viagem.

A coletiva final

Descobrimos, devido à insistência, que a tal Conferência Atlântica reunia economistas, políticos renomados e intelectuais de cada um dos países da Costa Atlântica para discutir assuntos de mútuo interesse. Na época, por exemplo, estava na agenda da Conferência tanto o endividamento excessivo das nações latino-americanas quanto o brutal desrespeito aos direitos humanos perpetrado pelos regimes militares instalados em diversos países desse mesmo continente. No último dia do evento, uma sexta-feira, chegaram os jornalistas argentinos para compartilhar da aflição dos dois jornalistas precursores: não ter informações de um evento daquela importância.

Todos unidos, pressionamos o Canarinho para nos dar ao menos um briefing que fosse sobre os resultados do debate. Providenciaram um intérprete e admitiram a realização de uma coletiva com o porta-voz. Eu fiz a primeira pergunta desejando saber se os conferencistas consideraram ou não excessivo o endividamento de certos países latinos. O Canarinho respondeu: “Uns conferencistas acharam que o endividamento é excessivo e outros acharam que o endividamento não é excessivo.” Valério Fabris fez a segunda pergunta: “Os conferencistas mostraram-se preocupados com a transgressão aos direitos humanos na América Latina?” “Alguns conferencistas mostraram-se preocupados e outros não”, respondeu, impávido, o porta-voz.

E assim foi a coletiva final. Depois dela, enquanto matávamos a fome e a sede na lanchonete do próprio hotel, perguntei ao Valério: “Você acha que essa Conferência serviu para alguma coisa?” Ri quase cinco minutos com a resposta: “Uns conferencistas acharam que serviu para muita coisa e outros acharam que não serviu para porra nenhuma.”

Detratores do papa não foram ouvidos

Lembrei-me dessa “cobertura” ao refletir sobre o jornalismo que é praticado hoje em dia. Os repórteres e editores são espécie de Canarinhos e o jornalismo uma espécie de Conferência Atlântica. Vejam a cobertura da imprensa brasileira sobre a escolha do Papa Argentino. Começa que o anúncio do novo Papa ocorreu na tarde de uma quarta-feira e a notícia se propagou como rastilho de pólvora por todo o planeta através da TV, do Rádio, da Internet, das mídias sociais, etc. etc. etc., mas os jornais do dia seguinte insistiram em informar que o conclave havia escolhido um papa argentino de nome Francisco. Quer dizer, não houve qualquer preocupação em apurar na frente de todas as demais mídias.

A renúncia de Bento 16 e a eleição de Francisco ocorreram embaixo de uma verdadeira tempestade de especulações em torno de escândalos – pedofilia, lavagem de dinheiro, corrupção – que atingem a Igreja Católica. Desde o resultado do conclave, de modo geral, a imprensa avançou pouco em mostrar qual será o estilo de gestão do novo pontífice ao enfrentar a onda de denúncias. Pesa ainda sobre o novo papa a suspeita de haver colaborado, enquanto cardeal, com o regime militar de seu país, se verdade foi que ele delatou dois frades de sua ordem, a jesuíta, por atividades subversivas. Passados nove dias da escolha do novo papa, consumidores de informação no Brasil ainda tentam encontrar uma boa resposta para a pergunta: “Teria o novo papa realmente colaborado com o regime militar ou as informações a respeito são pura calúnia de seus opositores argentinos? Até agora, a resposta que veio da imprensa, inclusive das revistas de interesse geral, foram à la Conferência Atlântica: “Uns dizem que ele colaborou e outros dizem que ele não colaborou.”

Tivesse a o jornalismo brasileiro passado por sua evolução natural desde os anos 1970, um assunto como esse teria sido o máximo possível elucidado já nos primeiros dias de cobertura sem abrir essa imensa margem especulativa. Os detratores de Francisco sequer foram ouvidos.

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Dirceu Martins Pio é jornalista e consultor em comunicação corporativa