O caso das concordâncias verbais pode ser explorado de diferentes maneiras, permitindo a defesa de diferentes teses sobre o funcionamento das línguas e mesmo das gramáticas. Na verdade, sobre seus limites ou sua heterogeneidade. Tratada a questão de maneira superficial e com base em exemplos simples, tudo parece claro. E permite desdenhar dos que se ‘descuidam’ e, mais lucrativamente, fornecer dicas falsas, principalmente aos interessados em concursos.
Mas, considerando situações mais numerosas e, especialmente, diversas, vê-se logo que se trata de fenômeno complexo. O domínio lembra mais a previsão do tempo (ou as orientações para emagrecer saudavelmente) do que explicações sobre a queda dos corpos.
A regra geral parece fácil. O verbo concorda com o sujeito em número e pessoa. Descreve facilmente casos como ‘o boi baba / os bois babam / os bois e as vacas babam’ e mesmo inversões como ‘Babam os bois’. As apostilas e pequenos manuais de autoajuda linguística acrescentam dicas relativas a casos especiais (que, no fundo, pedem para decorar): ‘Fui eu quem pagou / Fui eu que paguei’, sem contar as eternas lições sobre o verbo ‘haver’. Às vezes, acrescentam-se exemplos como ‘os brasileiros somos otimistas’, com uma nota rápida sobre seu sentido (o falante também é brasileiro).
Casos especiais?
Boas gramáticas fornecem lista fornida de casos especiais, sempre bem documentados, isto é, com abonações de escritores clássicos. A antiga (e excelente) Gramática Expositiva de Eduardo Carlos Pereira, por exemplo, lista vinte e dois (22!) desses casos. Cunha e Cintra gastam 15 páginas (a enumeração é caótica) com o tema, e Bechara, mais de 10. Ou seja, a rigor, não há regra! O que há são muitos fatores que interferem na relação entre verbo e sujeito, e eles são de natureza diversa.
Pode-se / podem-se (!) tentar algumas generalizações. Por exemplo, a explicação pode ser sintática, semântica ou ‘pragmática’. Uma regra como a enunciada acima é sintática: o verbo copia traços de número e pessoa do sujeito; se o sujeito está no singular ou no plural, o verbo o seguirá; se o sujeito for de segunda ou de terceira pessoa, idem (esses traços têm, claro, algo de semântico…).
Há casos (previstos, consagrados) de concordâncias que se explicam por fatores semânticos, dentre os quais o mais típico é a concordância dita 'ideológica': bons exemplos são coletivos (sintaticamente singulares, semanticamente plurais). Às vezes, essa concordância só aparece em retomadas como ‘O casal sai de casa. Descobrem que…’.
Classifico como ‘pragmáticos’, sem muito compromisso, casos como os sujeitos compostos com ‘ou’. “Disjuntivas levam o verbo ao singular, se houver exclusão”, afirma E. C. Pereira. Assim, diz-se 'O Grêmio ou o Inter será campeão' se o regulamento não prevê a hipótese de haver dois campeões; em caso contrário (ou em campeonatos diferentes), se poderia dizer 'serão campeões' (temos que conhecer os regulamentos para decidir).
Dois fatores sintáticos relevantes são a posição relativa do verbo e do sujeito e a distância entre eles. Frequentemente, se o sujeito é posposto ao verbo (sua posição ‘típica’ é antes do verbo), a concordância pode não acontecer (ou, aparentemente, concordar apenas com uma parte do sujeito composto!). E. C. Pereira dá bons exemplos: “Do mesmo pai nasceu Esaú e Jacó”, “É muda a dor e o gozo”. Mas acrescenta que, se o sujeito composto comportar nomes próprios (o que é uma questão semântica), “melhor se fará a concordância no plural” (Passaram Aníbal e Cipião).
Estudos mostram que, em variantes populares, nas quais podem ocorrer casos sem concordância, estes são mais numerosos com sujeitos inanimados do que com sujeitos animados, o que também é um fator semântico.
Incoerência e complexidade
Há casos em que a explicação não é evidente, ou duas podem concorrer: em ‘um bando de pássaros voaram’, 'voaram' se deve a 'bando' (um coletivo) ou a 'pássaros', pela proximidade (como em ‘a maioria das pessoas foram’)?
Outro exemplo similar é do tipo 'que ameaço divino ou que segredo este clima, este mar nos apresenta…?’, cuja explicação é que as palavras são quase sinônimas (como em 'a dor e a mágoa o deixou triste'). Até que ponto se pode garantir que a explicação é esta e não, mais simplesmente, que a concordância se deu com a última palavra, a mais próxima? Um bom teste seria se esta estivesse no plural… (a dor e as mazelas…).
Uma lista de casos não é propriamente uma gramática. As regras parecem ad hoc, formuladas apenas para dar alguma dignidade às idiossincrasias dos escritores. Mais provavelmente, elas testemunham que os fatores que regem o fenômeno são diversos, que as regras são variáveis, que questões de estilo, de ênfase, de processamento, afora questões semânticas, sintáticas e pragmáticas, condicionam as formas de estabelecer relações entre sujeito e verbo.
Ponho em dúvida a consciência explícita dos escritores, que teriam escolhido determinada forma para produzir efeitos (estéticos?) de certo tipo. A meu ver, trata-se de fenômenos que ocorrem em todas as classes sociais e em diversos contextos.
Penso que apenas casos do tipo ‘Nós vai’ é que são exclusivos de determinados grupos de falantes. Os outros, apresentados como se fossem manobras estilísticas especiais, são assim apresentados para tentar manter uma separação entre fala popular e culta, que nem sempre se sustenta.
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Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)