Impressiona como governo, polícia e Ministério Público conseguem levar a mídia para onde desejam. E ela vai com uma docilidade de fazer inveja à mais mansa das ovelhas. Presenciamos com maior clareza esse fenômeno dos tempos modernos na cobertura do caso do Hospital Evangélico, de Curitiba (PR), onde a médica responsável pela Unidade de Terapia Intensiva, Virgínia Helena Soares, é acusada de ter abreviado a morte de algumas dezenas (o número aumenta ou diminui de acordo com a conveniência de polícia, MP e governo) de pacientes atendidos pelo Sistema Único de Saúde e assim aberto vagas para outros, assistidos pelos convênios que remuneram melhor os hospitais. A cada dia que passa o caso do Evangélico se parece mais com aquele outro, da Escola Base, em 1994, São Paulo, onde pessoas inocentes tiveram suas vidas-cidadãs praticamente destruídas pela mídia, que embarcou na versão da polícia baseada na declaração de crianças de que haviam sofrido abusos sexuais.
Polícia e Ministério Público já descobriram o quanto a mídia é frágil. E já desenvolveram uma tática infalível em manipulá-la. Se as duas instituições se unem no propósito de condenar alguém já sabem que podem contar com a mídia para promover uma pré-condenação. Sabem que a mídia não vai investigar nada, sabem que ela vai ficar presa ao “declaratório”, sabem que ela perdeu a inteligência, sabem que o jornalismo que hoje é praticado no Brasil não se baseia mais, como deveria ser, no contraditório e na desconfiança, por mais confiável que possa ser a fonte.
O caso tem complexidade porque o fenômeno da morte em UTIs é um assunto complicado. Com a ampliação da oferta de órgãos para transplante no Brasil, foi necessária a edição de leis severas que obrigam os hospitais e clínicas a demonstrar, com exames e evidências comprobatórias, que o doador sofreu de fato “morte encefálica” ainda que continue a respirar, ligado ou não aos aparelhos. A ocorrência da morte encefálica, algo que pode ser identificado por médicos intensivistas, na prática significa que a pessoa não terá nenhuma chance de sobrevida. Terá vida vegetativa, se coração e pulmões continuarem em funcionamento. Nesses casos, foi totalmente destruído o que a Medicina chama de “complexo humano”.
Denúncias não são pesquisadas
A mídia, contudo, passa ao largo dessa complexidade e sequer se refere a ela. Cobre o caso do Evangélico como quem cobre uma partida de futebol. Publica declarações e mais declarações sem se preocupar em descobrir se as pessoas falam a verdade ou mentem, ou simplesmente não sabem o que dizem. Se pegarmos cada um dos aspectos importantes desse caso e observarmos como tem sido abordado, teremos hoje uma síntese da extrema fragilidade da mídia e do quanto ela é manipulada em casos como esses:
1. Uma paciente internada na UTI do Evangélico em dezembro de 2012 acusa a médica Virgínia Helena Soares de tentar matá-la, desligando-a do respiradouro. Voltou a ser ligada ao aparelho pela “compaixão” de uma das enfermeiras. A mídia não mostra que ligar e desligar os aparelhos de pacientes é uma atividade de rotina nas UTIs. Existe até um nome para o procedimento: “desmame”. Os médicos precisam testar com frequência a capacidade dos pacientes em respirar sem os aparelhos.
2. Enfermeiros denunciam a médica Virgínia Helena de mandar ministrar a determinados pacientes certas drogas que, a depender da dosagem e da combinação entre elas, pode abreviar a vida dos pacientes. A mídia fica no jogo de versões. Não ouve intensivistas de outras UTIs para saber se essa prática é ou não usual, como afirma a própria Virgínia Helena Soares. Existem também bioquímicos e farmacologistas que poderiam ratificar ou negar essas versões.
3. Fontes anônimas falam do “péssimo” relacionamento de Virgínia e sua equipe. Acusam-na de “espancar” funcionários. E recomendam aos jornalistas pesquisar no tribunal do trabalho de Curitiba para observar a “incrível” quantidade de ações trabalhistas contra o Hospital Evangélico devido ao relacionamento conflituoso entre Virgínia e seus funcionários. A mídia publica tais informações sem pesquisar se o Evangélico sofre mesmo essa sobrecarga de ações trabalhistas em comparação com outros hospitais da cidade do mesmo porte. Não pesquisa na polícia civil para saber se ao menos um desses “espancamentos” resultou em processo, se houve exame de corpo de delito. O destino de denúncias de maus tratos no trabalho não é a Justiça do Trabalho, e sim, a delegacia de polícia mais próxima.
Comprovação das denúncias é muito difícil
4.Fontes anônimas informam que a médica Virgínia Helena Soares não é intensivista e que permaneceu no cargo de chefe da UTI por tanto tempo porque tinha um “padrinho” na política do Paraná. É pouco provável que um hospital do porte do Evangélico coloque um “não-intensivista” para gerir uma UTI. De qualquer modo, a mídia fica mais uma vez no jogo de versões e não procura comprovar se isto é falso ou verdadeiro. Talvez uma visita rápida ao Conselho Regional de Medicina do Paraná fosse o suficiente.
5. Por último, surge um novo personagem no caso: o médico Mário Lobato, nomeado, por sua condição de perito, como auditor das denúncias por indicação do Ministério da Saúde. Não é intensivista. A mídia o qualifica como “cardiopediatra” (?). Sua missão é realizar a peritagem. Antecipou-se a ela com declarações bombásticas que lhe renderam aparições até no Fantástico e no Jornal Nacional: “Alguns dos doentes estavam acordados e conscientes, momentos antes da morte.” A mídia não mostra que a morte é mesmo rotina nas UTIs, que recebem apenas os pacientes que correm sérios risco de vida. As pessoas morrem em UTIs por falência múltipla dos órgãos, mas morrem também, mesmo estando lúcidas, conscientes, por acidentes vasculares ou parada cardíaca. A mídia transforma a referência a uma rotina numa “denúncia seríssima”, bem ao gosto de quem fez a declaração.
O auditor Mário Lobato diz também que as “mortes suspeitas” são centenas, passam de 300 e podem chegar a mais de mil. A mídia sequer se preocupou em questioná-lo para saber em que se baseia para fazer tais declarações. Inspirado na própria peritagem com certeza não está, pois mal teve tempo de iniciá-la. A mídia poderia, por exemplo, pesquisar o número de óbitos/ano em UTIs do mesmo porte dessa, do Evangélico, e comparar. Se o Evangélico apresentasse um índice expressivamente superior, aumentariam as probabilidades de polícia, Ministério Público e Ministério da Saúde estarem no caminho certo. Publicar o declaratório é muito mais simples e confortável.
O nome Hospital Evangélico parece ter sido transformado num alvo forte por certa mídia que vê emissoras de televisão sustentadas pelas igrejas evangélicas como principais concorrentes. Fazer jornalismo nessa briga talvez seja o que menos importa. O objetivo que muito provavelmente move os personagens desse caso é a construção artificial de crimes e delitos. Na verdade, a comprovação das denúncias atiradas contra Virgínia e outros membros de sua equipe é algo muito difícil, para não dizer impossível. Desligar os aparelhos daqueles pacientes que sofreram morte encefálica é um gesto de humanidade. Se esse paciente havia sofrido ou não morte encefálica não é algo que se pode apurar por necropsia, pelo que está escrito no prontuário e mesmo pelo que dizem os enfermeiros, nem sempre informados sobre o real estado de saúde do paciente. Qualquer hospital que se preze, não deixa de cumprir aquilo que prescreve a legislação no que se refere à caracterização da morte.
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Dirceu Martins Pio é jornalista e atual consultor em comunicação corporativa