Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Onde está a verdade?

Na mesma semana, além da solenidade de devolução simbólica dos mandatos políticos cassados pelo regime militar em 1964, a Assembleia Legislativa paraense abrigou a primeira sessão pública da Comissão da Verdade dos Jornalistas, a primeira dessas comissões instaladas no Pará. O próprio poder legislativo vai ciar a sua, enquanto o governo do estado permanece apático em relação a essa empreitada, da qual o sindicato dos jornalistas foi o pioneiro.

Os primeiros a deporem perante a comissão, presidida pela jornalista Franssinete Florenzano, foram Paulo Roberto Ferreira e eu. Senti no ar o mesmo clima de reabilitação e glorificação dos personagens que foram perseguidos a partir do golpe militar que derrubou o presidente constitucional do Brasil, João Belchior Marques Goulart.

De fato, houve perseguidos, humilhados e ofendidos a partir da supressão das garantias e direitos individuais. Jornalistas foram presos, alguns espancados e outros punidos por um exílio não formalizado. Sem emprego, vários profissionais tiveram que ir atrás de outra maneira de sobreviver. Os mais abonados continuaram a trabalhar nas redações ou em suas extensões. Mas tiveram que adotar pseudônimos ou se manter no anonimato dos escritos não assinados.

O primeiro momento do golpe foi de brutalidade e violência, que deixou marcas definitivas em alguns jornalistas e em suas famílias. É da regra desses movimentos a perseguição dos vencidos pelos vencedores, que usam o poder para a execução dos seus propósitos vingativos ou a realização de projetos que esbarravam na ordem democrática vigente até a véspera.

A barbárie tinha ainda outro componente: o golpe aconteceu depois do período de mais prolongada democracia que a república brasileira já vivenciara. Com a liberdade, que nos 10 anos anteriores tinha sido quase plena, a criatividade, inventiva, audácia e desembaraço dos espíritos alcançara ponto único até então.

Fio condutor

Não por acaso, sobretudo nos cinco anos (valendo 50 em termos de crescimento econômico, com taxa média de mais de 9% ao ano) de Juscelino Kubitscheck, o Brasil experimentou um verdadeiro aggiornamento: a bossa era nova, assim como o cinema, a pintura, a escultura, a imprensa, toda a cultura. O Brasil fervilhava, os talentos desabrochavam, amadureciam ou se excediam.

A discussão de ideias e os embates políticos assumiam um grau de tensão e conflito que hoje, em democracia mais longeva e institucionalmente mais sólida, nos causa espanto e inveja. Raramente os polemizadores ou os antagonistas recorriam à via judicial para resolver suas diferenças. Quando não era levada ao chamado desforço físico, ela era travada na contenda, que tinha por cenário a tribuna parlamentar ou o front jornalístico. E aí tudo era permitido, da análise profunda à ofensa aberta. Quem fosse podre, se arrebentava. Quem não fosse, se consolidava.

Esse ambiente de radicalização e radicalidade (no sentido etimológico: a busca pela raiz dos fatos), propício à germinação da pluralidade e da controvérsia, era franco no dia 31 de março. No dia seguinte a ordem dominante se tornara totalitária. Acostumados aos golpes e tentativas de golpes ao longo de toda república, alguns acreditaram que essa interrupção da ordem constitucional seria breve. O primeiro ato de exceção baixado pelo primeiro governo militar, do marechal Castelo Branco, não tinha número. Nem precisava: era para ser primeiro e único. Mas quando a fermentação nacional começou a transbordar da ordem unida imposta de cima manu militari, começaram a se suceder os atos institucionais, na mais danosa das genealogias políticas que o Brasil já teve.

Os opositores do novo poder foram levados à clandestinidade, à adesão ou, nos casos extremos, à morte. Esse nível extremo não existiu no Pará. Quando ingressei na imprensa profissional, em 1966, o que mais impressionava era o adesismo contagiante. Havia poucas vozes dissonantes no coro dos contentes, coniventes ou omissos.

Antes mesmo de me tornar um jornalista, eu já era um observador atento da cena nacional, principalmente quando as viagens com meu pai me possibilitavam ver com meus próprios olhos os acontecimentos. Graças a esse guia, testemunhei o cenográfico comício da Central do Brasil, no Rio, pouco mais de duas semanas antes do golpe, e acompanhei uma conversa com Jango, na Granja do Torto.

Lia os jornais diariamente e com atenção redobrada. O que mais me espantava era o dedurismo, a ação nefanda dos delatores, nas páginas da até então gloriosa, para mim, Folha do Norte. Não conseguia entender como um jornal que até então criara a legenda da coragem e da resistência ao tirano e caudilho Magalhães Barata pudesse descer a patamares tão podres. Era ignóbil.

O ano em que ocupei um lugar na frente jornalística foi o mesmo da morte de Paulo Maranhão, a alma da Folha do Norte, e o quarto aniversário da morte de Frederico Barata, o grande intelectual que tentou criar um jornal isento das pequenas paixões partidárias dominantes no Pará, através de A Província do Pará. Os grandes atores de uma época começavam a abandonar da ribalta. Mas outros entravam em cena: foi também o ano do surgimento do Jornal da Tarde e da revista Realidade, em São Paulo. Oxigênio para ativar os cérebros adormecidos e eliminar a necrose da inteligência.

Mas em Belém havia marasmo. Fui para o Rio de Janeiro e encontrei o Correio da Manhã ainda em glória, embora também já em declínio. Aprendi muito. Voltei para Belém e já então os ídolos de antes se haviam acomodado ou se transferido para outras searas. Criei um caderno cultural em A Província aos domingos, com várias seções especializadas. Com ele demos uma página sobre Guimarães Rosa logo depois da sua morte. E quatro sobre o cinquentenário da revolução soviética, em 1967.

Não se podia fazer muita coisa, mas se podia fazer algo. Nós, um grupo de jovens jornalistas, fizemos uma versão local de O Pasquim com o Bandeira 3, cuja irreverência servia de fio condutor para a reescrita da história convencional das elites tradicionais. Depois, em novo retorno, criei uma coluna abrangente para criticar tudo que cheirasse a mofo e conveniência. E assim, de dose em dose, fomos expandindo os parâmetros da aceitação e da tolerância.

Pregação no deserto

De vez em quando se trombava com poderosos e se experimentava a força da sua reação. Mas antes do confronto nas ruas havia uma batalha mais indigesta: a interna, contra os donos do negócio. Eles não queriam se arriscar. Quando muito, aceitavam o risco controlado, medido, avalizado. Se excedia os limites, se voltavam contra o agente incômodo. Meus maiores conflitos foram com a censura interna, ontem e sempre.

Só me libertei dela, libertando-me inclusive de mim, num experimento radical como este jornal, cujos limites são as suas próprias deficiências. É possível apontar errinhos em cada uma das edições deste jornal. Pode-se discordar sempre das suas interpretações e conclusões. Em alguns casos, deve-se mesmo discordar. Mas acho que até os mais ferrenhos dos seus adversários ou inimigos devem concordar que ele se empenha ao máximo em buscar os fatos para poder divulgá-los em sua plenitude o mais rápido que for possível.

Para tal objetivo, a parte leitora do seu editor solitário só se manifesta depois que a edição está pronta. Nela não interfere para prevenir problemas e poupar contrariedades. Não se preocupa sequer com a segurança financeira da publicação, dispensada de tê-la pela diretriz editorial de não aceitar publicidade. O jornal é precário e assim continuará até o seu fim. Nada pode ser feito para torná-lo mais pobre, embora juízes tendenciosos o punam impondo-lhe o pagamento de verbas indenizatórias mais do que abusivas: impossíveis.

Testemunha dos primeiros tempos da edificação do monstro autoritário, pude vê-lo desmoronar, 21 anos depois. Hoje, passados 28 anos, a verdade parece tão ou mais perseguida do que nunca. Confinada a umas poucas instâncias e escaninhos, ela é proclamada como bandeira pelos que, mais uma vez, se aventuram a escrever uma história que lhes é interessante, mas não é a que vimos e testemunhamos. Mais uma vez, temos que nos dispor a pregar para os desertos, sem o consolo de nos podermos considerar profetas.

A verdade ainda é produto de luxo no Brasil. Quando não, pura metafísica.

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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)