Será que a acusação da presidente Dilma Rousseff (PT) de que suas palavras foram manipuladas está tão errada assim? Analisar o caso e o atual jornalismo econômico traz reflexões que ultrapassam a falta de contexto que é prática nos grandes jornais.
Na quarta-feira (27/3), durante o V Cúpula dos Brics (bloco econômico formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) em Durban, na África do Sul, a presidente concedeu uma entrevista coletiva a vários repórteres brasileiros que lá estavam acompanhando os debates dos presidentes dos cinco países. Após falar sobre dificuldades, realizações e desafios do bloco, um jornalista do Valor PRO (identificado pelo jornal Valor Econômico na edição do dia 28) questionou a presidente sobre o impasse entre crescimento, inflação e mercado de trabalho aquecido. Antes de ver a resposta da presidente, vale uma contextualização.
Nos dias anteriores – isso considerando antes e depois do dia 27 – foram publicadas várias reportagens na grande imprensa sobre o mercado de trabalho aquecido. São diversas visões sobre a relação inflação e taxa Selic. Os porta-bandeiras da necessidade urgente de aumento da taxa básica de juros e/ou aumento do desemprego são os jornais O Estado de S. Paulo e, em menor grau, a Folha de S.Paulo e também o Valor Econômico, que parece ter uma racionalidade um pouco mais pé no chão em todo esse caso.
Independência do Banco Central
Além das discussões sobre a relação desemprego e inflação, os jornais das últimas semanas trouxeram outras pautas. Todo e qualquer ato da presidente Dilma vira pauta. Nada mais natural no ponto de vista jornalístico. Mas o que parece ser forçado nestes últimos dias é a quantidade de vezes que inflação e taxa de juros é citada por esses jornais durante a semana. Quer seja em artigos opinativos, colunas, editoriais e reportagens, os jornais paulistas estão aproveitando o cenário econômico para o que parece ser uma desmoralização da presidente Dilma, mesmo frente às pesquisas que mostram a aceitação de seu governo.
Eis que, frente a todo esse cenário que foi (e vem sendo) construído pela imprensa e seus analistas, a presidente respondeu à pergunta do repórter do Valor e todo o bafafá começou naquela semana. Vou me ater a dois pontos: a questão do ministro da Fazenda e o debate sobre a inflação e a declaração sobre o não comprometimento do crescimento da economia.
De acordo com a transcrição, o áudio e o vídeo da entrevista coletiva disponibilizados pelo Blog do Planalto, a pergunta foi: “(…) É sobre os Brics, é porque a senhora está falando muito da questão do crescimento, da importância que os países têm de manter o crescimento. Mas, ao mesmo tempo, o Brasil, que é um dos principais dos países dos Brics, está se falando muito da necessidade de talvez conter… medidas que reduziriam o emprego, que estaria fazendo pressão inflacionária. O que a senhora acha desse tipo de…?”
Aí começa o problema, as versões e interpretações. A presidente começa sua resposta alegando que “geralmente, nas questões específicas sobre inflação, eu deixo para ser falado pelo ministro da Fazenda”, mas que adiantaria algumas questões aos jornalistas lá presentes. Já de cara essa frase, usada, abusada e criticada pelos jornais, deu argumentos àqueles que insistem que o Banco Central (BC) não é independente. A questão da independência do Banco Central provém de um arcabouço teórico na economia que preza pela relação mínima entre os dirigentes do “banco dos bancos” (como é conhecido o BC) e as políticas arbitrárias do governo em poder. Ou seja, é desejável que o BC não seja usado partidariamente pelo poder Executivo para fazer da política econômica um instrumento de campanha e deixá-la ao sabor do vaivém presidencial.
Cesta básica e folha de pagamento
Atenho-me apenas numa análise do discurso e da prática do jornalismo e não dos aspectos econômicos que envolvem a questão, é possível ver que a frase foi totalmente tirada do contexto quando transmitida para o público. Primeiro porque a pergunta foi feita num local não propício para essa discussão: a própria Dilma disse que queria responder questões sobre o encontro dos BRICS e não sobre a situação brasileira. E, na minha interpretação, a presidente queria apenas deixar que o ministro da Fazenda falasse sobre o assunto, sendo ele o porta-voz do governo para assuntos como o que foi questionado – afinal, quantas vezes se vê Guido Mantega discursando sobre economia? No entanto, a simples frase da presidente foi assunto suficiente para o jornal O Estado de S. Paulo abrir um quadro na primeira página do caderno “Economia & Negócios”, no dia 28 de março, falando dos deslizes da Dilma durante o encontro dos países emergentes.
Além dessa primeira frase da Dilma, outra foi amplamente criticada: “Esse receituário que quer matar o doente em vez de curar a doença, ele é complicado, você entende? Eu vou acabar com o crescimento do país. Isso daí está datado, isso eu acho que é uma política superada.” Segundo os jornais do dia seguinte, a frase da presidente gerou um mal-estar no mercado financeiro. Os agentes que agem a partir de expectativas quanto ao futuro dos juros para vender e comprar ações ou títulos, interpretaram que não haveria aumentos na taxa Selic.
A frase, assim como a anterior, também foi tirada fora do seu contexto. Antes de falar sobre esse receituário, a presidente havia citado as medidas que seu governo está adotando para tentar conter a inflação. Ela inclusive citou medidas no campo da Educação que têm como objetivo aumentar a quantidade de mão-de-obra capacitada no Brasil – uma constante no discurso de empresários quanto às dificuldades para a produção. Também citou desonerações na cesta básica e da folha de pagamento – outra constante da crítica quanto às altas taxas brasileiras que aumentam os custos da produção. Mas e ai? Quem citou essas justificativas?
Jornalismo econômico e política
Além disso, e vale a pena citar, a presidente concluiu sua resposta dizendo que o fato de achar o tal receituário ultrapassado “(…) não significa que o governo não está atento e, não só atento, acompanha diuturnamente essa questão da inflação. Nós não achamos que a inflação está fora de controle, pelo contrário, achamos que ela está controlada e o que há são alterações e flutuações conjunturais. Mas nós estaremos sempre atentos.” É possível dizer que o governo nega a inflação, afirmação usada por articulistas da imprensa, frente a uma fala dessa?
O mais interessante ao analisar o discurso desses jornais é construir uma grande história, com começo, meio e fim, como propõe Luiz Gonzaga Motta no artigo “A análise pragmática da narrativa jornalística”. Reunindo todas as reportagens que relacionam aumentos das variações de preços e taxa Selic é possível construir como os jornais se colocam frente à inflação. É considerável a quantidade de reportagens e artigos que falam que o mercado de trabalho é um dos principais fatores da inflação e que é preciso aumentar o desemprego para conseguir encaixar a economia lá na curva de Philips que relaciona inflação alta e taxas de desempregos baixa e vice-versa.
Neste jornalismo que usa a bandeira da objetividade mas veste a camisa da ideologia político-partidária, é lei focar apenas nos aspectos negativos da fala da presidente e lotar as páginas com angulações pessimistas sobre números da economia. Em conversa com um professor de economia da Unicamp, questionei como ele viu o caso. De cara, o professor disse que a presidente não deveria ter respondido a pergunta. Mas qualquer resposta dela seria o suficiente para a imprensa fazer o mesmo showrnalismo que fez.
“Esperemos 2014”
Ele ainda me explicou que o governo petista vem de uma atuação presidencial sem muitas brechas para a crítica da imprensa. Segundo ele há dez anos que a imprensa não conseguia criticar fortemente o PT como vem fazendo nestes últimos meses. De repente, frente a todo o cenário de reflexos de crise, baixo crescimento, entre outros assuntos, uma linda brecha se abriu e em um dos melhores momentos: véspera de eleição. É um uso político do jornalismo econômico.
Refletindo sobre as palavras desse professor e voltando os olhos para o jornalismo econômico feito pelos principais jornais paulistas, é possível identificar claramente um discurso contra o atual governo. Parece que esse jornalismo está em função da crítica que irá ser usada nas próximas eleições presidenciais. Vai ser interessante assistir às propagandas eleitorais e contar quantas dessas reportagens foram usadas. Portanto, como concluiu Fernando Henrique Cardoso em seu artigo “Razão e bom senso”, no Estado de S. Paulo deste domingo, “Esperemos 2014”.
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Alex Contin é jornalista, mestrando em Divulgação Científica e Cultural do Labjor/Nudecri/Unicamp e graduando em Ciências Econômicas no Instituto de Economia/ Unicamp