A era tecnológica modificou o processo de newsmaking, a lógica dos news values e a arquitetura operacional do lead a tal ponto que hoje já é normal falar-se em uma nova espécie de jornalismo, o chamado “jornalismo cidadão” (citizen journalism) [o jornalismo cidadão também tem sido chamado de jornalismo democrático (democratic journalism), jornalismo em rede (networked journalism) ou jornalismo de raiz (grassroots journalism)], não mais controlado pelos donos das empresas jornalísticas, pelos gatekeepers ou pelos jornalistas. Desde o momento em que as máquinas digitais entraram em cena, o verdadeiro mandatário da informação é o cidadão comum, que já pode manufaturar, fabricar, registrar e transmitir dados, fatos ou opiniões sobre acontecimentos da realidade a qualquer momento, a partir de qualquer lugar do mundo, desde que tenha em suas mãos um aparelho móvel interligado à rede mundial de comunicação digital.
As possibilidades tecnológicas permitem que o cidadão se torne, se ele quiser, uma redação de jornal ambulante. Munido de uma máquina fotográfica digital, de um tablet ou de um netbook/notebook, de um processador de texto, de um smartphone e de um link portátil para a rede mundial de PCs, o indivíduo tem a possibilidade mágica de virar uma verdadeira empresa jornalística, assumindo as funções da captação, processamento e distribuição de notícias.
Numa idílica volta às origens, o cidadão contemporâneo pode virar aquilo que o homem-cartaz fazia com grande eficácia nos século 19 e 20, propagandeando produtos ou informações em sua roupa de papelão portátil, com mensagens afixadas tanto em seu dorso como em seu tórax. Ele era o próprio cidadão-jornal ou a Acta Diurna ambulante, que, assim como o velho Diógenes (o Cínico), perambulava pelas ruas e fazia o papel de ser o “leva e traz” do que acontecia no sempre inquieto universo social.
Apenas uma suave lembrança
Exemplos reais deste jornalismo-cidadão foram, por exemplo, a divulgação, em tempo real, pelo Twitter, da operação de invasão à fortaleza de Osama bin Laden, no Paquistão, das manifestações populares na Praça Tahrir, no Egito, pelo Facebook, da denúncia do doping pelo ciclista Lance Armstrong, também via Twitter, bem como o escândalo do jornal News of The World, do empresário australiano Rupert Murdoch, que grampeou telefones de aproximadamente quatro mil pessoas, inclusive de membros da família real inglesa, revelados pelo Reddit.
Os mais inovadores caminhos abertos pelas tecnologias digitais viraram o centro do picadeiro do jornalismo-cidadão. Produzida a partir de uma infinidade de técnicas, a informação pode ser retransmitida pelos canais eletrônicos a partir de weblogs(páginas de textos, imagens ou vídeos), e-mails (mensagens de textos), flogs (blogs feitos com fotos), vlogs (blogs feitos com vídeos), podcasts (arquivos de som, vídeo e imagens), wiki (sites que permitem adicionar conteúdos), tweets (mensagens curtas com até 140 caracteres), além da infinidade de ferramentas criadas pelas redes sociais, como o Facebook, o Orkut, o Tumblr e o LinkedIn, assim como as tecnologias de armazenamento e exibição de vídeos, como o YouTube, comunicação online, como o Skype, e fotografias, como o Instagram.
Com isso, o tempo do jornalismo tradicional, conduzido pelos profissionais da informação, com suas utopias, suas tribunas e suas promessas de revolução social, só existe hoje como uma suave lembrança nos livros acadêmicos, nas páginas amareladas dos folhetins e dos vespertinos populares ou, em breves lampejos, nas páginas de revistas semanais ou de jornais diários, ao redor do planeta.
Necessidade social da informação
Este modelo criou a forma clássica da técnica de codificação das notícias, que também sobrevive hoje apenas como referência e reminiscência intelectual. O método mudou simplesmente porque parece que o destino de tudo é mudar. O lado bom é que, apesar da técnica não ser mais a mesma, os princípios do jornalismo continuam intocados. Em outras palavras: a aparência (ou a técnica) foi reconfigurada, mas a essência (da linguagem e dos valores) permanece inalterada.
O que vale, no mundo dos news values, ainda é o estranho, o insólito, o anormal, o diferente, o inusitado, o incomum, o paradoxo ou o extraordinário. O que faz parte do cotidiano, do ordinário, da banalidade, não interessa às hostes jornalísticas, vocacionadas sempre a vampirizar a face obscura da realidade.
Neste sentido, é que, aconteça o que acontecer, a sociedade acaba sempre desenvolvendo formas singulares, em cada etapa histórica, para promover a livre circulação de informações. Independentemente de sua maior ou menor importância, as “notícias” são sempre necessárias para alimentar e realimentar a alma e o imaginário dos cidadãos sobre a realidade da ordem e da estrutura social.
“A imprensa que se dane”
Note-se que, desde o amanhecer do século 21, o sistema de comunicação social, interativo, virtual e digital, transformou-se num ofício popular, democrático e universal, ao alcance de todas as pessoas, oportunizando, pela primeira vez na história, a quebra dos monopólios empresariais da informação e o fim do controle do processo de produção e circulação de notícias pelos jornalistas.
Isto representa, para o bem ou para o mal, que o regime de mediação da realidade, isto é, de reportação e de recodificação do universo humano, não está mais encerrado em uma torre de comando ou sob a égide de um grupo seleto de argonautas da informação. A tecnologia permitiu que, curiosamente, a realidade possa ser apenas a própria realidade, ou, de acordo com o caso, a versão interpretada (aumentada, diminuída, torcida, trabalhada etc.) do que cada pessoa acredita ser a realidade.
A primeira consequência disto é que, finalmente, ninguém mais decide, a partir de todo um processo de engenharia cultural, qual a opinião ou a impressão que cada pessoa irá ter sobre o mundo em que ela vive. A partir de agora, as pessoas decidem aquilo que elas irão conhecer e quais as opiniões que elas próprias irão estabelecer sobre isto ou aquilo. De maneira curiosa, o cidadão pode agora devolver à imprensa e ao mundo empresarial da informação, numa espécie de triunfal vingança histórica, a famosa frase do empresário britânico Willian Vanderbilt, ao ser indagado pela imprensa a respeito da construção de uma linha de trem: “O público que se dane.” O povo já pode declarar a Vanderbilt, aos barões da imprensa, aos editores e a todos os manipuladores da informação: “A imprensa que se dane.”
Cidadão decide o lead
A segunda consequência está na evidência de que a fórmula mágica do lead deixou de ser um mistério privativo de alguns poucos especialistas, esfumando-se no ar e nas marés digitais da informação. O feitiço foi quebrado para sempre, em um sereno desencantamento do mundo administrativo e operacional do newsmaking.
O encanto cabalístico que envolvia toda a maquinaria coletiva utilizada no processo de celebração ritualística da informação não pertence mais a ninguém. A notícia está nua. Qualquer pessoa pode ter acesso ao ritual de alquimia transcendental na fermentação das palavras, dos dados e das opiniões. Não há mais aura na obra de arte, técnica e linguagem que dourava o jornalismo. Qualquer pessoa pode ter acesso à kriptonita da informação e da comunicação, apossando-se dos poderes mágicos de Clark Kent.
O resultado é que, no fim das contas, ninguém mais é dono, artesão ou operador do lead, do newsmaking ou dos news values. Todos os fatos podem se transformar em leads e qualquer pessoa pode iniciar um processo denewsmaking. Para completar, é possível que um grupo de cidadãos comuns passe a julgar e a decidir o que vale e o que não vale virar notícia. A ciência do jornalismo foi, assim, transcodificada pela sociedade, que assumiu o compartilhamento genético de sua própria realidade. Nisso, os fatos agora só são verdadeiramente fatos e merecem circular se os indivíduos tiverem interesse que estes fatos existam e circulem.
Cidadão se transforma no próprio lead
A virada tecnológica permite, inclusive, que o cidadão induza ou manipule a realidade (da mesma forma que a imprensa tradicional fazia) e que, a partir de uma inédita espécie de síndrome de Clark Kent proletário, ele se transforme no próprio lead da informação. Não é mais necessário esperar que a realidade aconteça ou que exista alguém preparado, esperando para registrar os acontecimentos da realidade. O cidadão-show, o cidadão-espetáculo, o cidadão-obra-de-arte, descobriu que ele mesmo pode instituir, “induzindo” e “conduzindo”, os fatos e os fenômenos sociais.
Esta é a terceira consequência do citizen journalism. O cidadão descobriu que a fabricação e a circulação da notícia não só está ao alcance de todos, mas que a lógica de simulação e dissimulação da realidade, a partir de um processo de artificialização social e de teatralização cultural, é possível e está à mercê de qualquer pessoa.
Nesta nova ordem tecnológica da comunicação e da informação, qualquer pessoa pode ser um lead pelo menos durante 15 minutos. Qualquer pessoa pode virar uma pirâmide invertida, já que, afinal de contas, toda a sociedade tem direito à democratização midiática da própria imagem e à popularização noticiosa das suas pequenas verdades. Chegamos, enfim, à sagração total do direito à liberdade da informação, posto que agora o ser humano tem o direito de se transformar na manchete de sua própria vida, possuindo ela – a vida – a essência que o indivíduo queira que ela tenha. Afinal, a vida é dele e, como ninguém tem nada a ver com isso, o leadtambém.
A “construção social da realidade”
As redes sociais transformaram-se, neste sentido, no principal instrumento da técnica popular e democrática de codificação informativa. Todo novo post, twit, podcast (etc)surge sempre como o grito final da informação, na medida em que o sujeito considera que aquilo que ele está divulgando, a partir de sua referência individual, é aquilo que deve ou precisa ser conhecido pelo universo social.
Em outras palavras: a realidade individual, com suas verdades pessoais, torna-se a medida da realidade social, formada, a partir de então, pela “reunião” coletiva das verdades pessoais.
O resultado é que a opinião do indivíduo, com sua versão personificada da realidade e com o seu ponto de vista arbitrário, passa a valer como o novo processo de “construção social da realidade” (no conceito de Berger e Luckman), estabelecendo, a partir deste processo heurístico, a lógica de que a opinião do indivíduo transforme-se na lógica do lead e que esta se transforme na lógica da verdade e da realidade.
O senhor da verdade social
Não interessa ao indivíduo se existem paradigmas científicos, metafísicos ou ideológicos sobre a ordem e a estrutura social, cultural ou moral da sociedade. A única verdade que realmente vale para o indivíduo é a sua própria verdade. A história de vida faz com que o indivíduo comum assuma seus pontos de vista, suas idiossincrasias e suas experiências como a verdadeira matriz do seu sistema de crenças, seja ele objetivo ou meramente subjetivo. Nenhum dos grandes paradigmas da história, como o iluminismo, o marxismo, o freudianismo ou o cristianismo, valem mais do que a sabedoria adquirida por cada cidadão em sua realidade concreta e imediata.
A escola da vida serve assim muito mais como instrumento de educação e de endoculturação para o indivíduo do que todas as meta-narrativas lyotardianas da modernidade. Tudo o que ele viveu na pele foi muito mais educativo e elucidativo do que todos os discursos propedêuticos. O que vale, portanto, é a catequese oportunizada pela cartilha da vida cotidiana, com sua lógica absolutamente pragmática e sua dimensão perspectivista nietzschiana.
O fato, portanto, é que, como uma quarta consequência do citizen journalism, o cidadão tornou-se o senhor absoluto da verdade social, posto, que em sua visão, ele é quem vive, sente e experimenta, na carne, as contingências da verdade mundana. O cidadão reproduz, com esta lógica, a concepção de que quem vive e conhece a realidade da guerra é quem está na frente de batalha, ou seja, a infantaria. Quem pensa, idealiza ou racionalidade a realidade, acaba apenas platonizando um mundo ideal, mas, automaticamente, irreal.
O “cidadão-notícia” e o “cidadão-jornal”
Por esta medida, é que o cidadão acaba se transformando no verdadeiro autor dos leads cotidianos da realidade imediata e material. Ninguém melhor do que ele, afinal, para saber o que é e o que não é a realidade. Nesta dinâmica, o jornalismo convencional, analógico ou digital, perde rapidamente seu poder, sua importância e seu valor como torre de comando do espaço aéreo da informação e como casa de máquinas do processo de transcodificação da realidade em notícias. Os jornais estão perdendo seus leitores tanto porque o mundo migrou para as plataformas digitais, mas, sobretudo, porque os leitores “sabem”, agora, muito mais as verdades do mundo real do que a própria imprensa.
A consequência final de todo este processo de transmutação provocado pelo jornalismo cidadão é que, ao descobrir como os jornalistas tiram o coelho da cartola, o indivíduo também aprendeu a produzir notícias e, além disso, descobriu que ele pode criar ou determinar o lead do jeito que ele quiser. Em síntese, o cidadão pode tanto decidir o que ele quer que as pessoas saibam sobre a realidade como também pode induzir artificialmente o que é e o que não é a realidade e a verdade. Qualquer indivíduo pode assim criar novos e originais critérios de noticiabilidade, transformando, por exemplo, seus autos-retratos, seus desabafos sobre a mediocridade humana ou seus muxoxos sobre a alienação política, em referências axiológicas, ideológicas e deontológicas sobre o que é importante ser conhecido no mundo social. Ele assume assim, num efeito cascata, a origem da agenda-setting ou da própria espiral do silêncio.
O mais fantástico de tudo, entretanto, está no fato de que o indivíduo parece estar estabelecendo o mundo ao seu redor a partir da lógica do lead, ao escolher, filtrar e selecionar os conteúdos ou mensagens que ele avalia como os mais importantes, e, instituir, ao mesmo tempo, um universo próprio, assentado no mundo das tecnologias digitais, onde ele estratifica, hierarquiza e organiza a realidade a partir de uma dinâmica mental particular.
Mais do que simplesmente criar o jornalismo-cidadão, o indivíduo tem, de certa forma, a capacidade de criar o “lead-cidadão”, a “notícia-cidadão” e o “jornal-cidadão”, percebendo o mundo a partir da sua própria visão sobre a verdade, e de estabelecer uma dinâmica social singular na medida em que, após ter descoberto o segredo da cartola mágica, ele pode também se tornar o “cidadão-lead”, o “cidadão-notícia” e o “cidadão-jornal”.
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Leandro Marshall é professor universitário, doutor em Ciências da Comunicação, pós-doutor em Sociologia e mestre em Teorias da Comunicação