Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Jornalismo mandou lembranças

Todos estamos cansados de saber que neutralidade, ou mesmo imparcialidade, são ideais impossíveis de serem alcançados pelo jornalismo. Em muitos casos é até indevido buscar alguns desses ideais, mas há uma linha clara que separa o jornalismo, mesmo opinativo, de assessoria de imprensa. Os jornais recentemente têm esquecido este limite, esta linha, simplesmente prestando assessoria de imprensa para o governo federal na questão de Belo Monte.

Cerca de 300 indígenas de diversas etnias invadiram o canteiro de Belo Monte, contanto inclusive com o apoio dos funcionários do canteiro invadido. Esta é mais uma manifestação que demonstra a total insatisfação dos povos originários com uma obra construída sem que eles fossem consultados e tivessem seus direitos respeitados. Participam da ocupação também indígenas da etnia Munduruku, cujo território se encontra invadido pelo exército e pela Força Nacional com a desculpa de que serão feitos estudos para a construção de não se sabe quantas usinas hidroelétricas na região do rio Tapajós e os indígenas sabem, por experiência, que não serão consultados e tão somente sofrerão os impactos negativos da obra.

Em torno de Belo Monte, indígenas já encontram dificuldade em ter acesso a água, ao passo que em Altamira casos de prostituição forçada, prostituição infantil e aumento na criminalidade e nos preços dos imóveis, resultando em expulsão daqueles mais pobres de suas casas, se tornaram lugar comum. O mesmo temem os Mundurukus que aconteça em sua região.

Acusações caluniosas

Experiências de megaempreendimentos na Amazônia resultando em desastre são fartos. Lembremos o genocídio dos Waimir-Atroari, nos anos 1970, para a construção da Transamazônica. Pelo menos dois mil foram torturados e mortos. Isto sem contar com outros problemas decorrentes do empreendimento, como mudança no curso dos rios, da qualidade e quantidade de pesca e mesmo o alagamento de suas terras.

Jornalistas e equipes de TV presentes durante a ocupação foram expulsos pela polícia e ameaçados. Um jornalista foi inclusive multado por exercer sua profissão e noticiar o que acontecia e em momento algum vimos qualquer revolta por parte dos meios de comunicação nacionais contra este claro atentado à imprensa em pleno dia da liberdade de expressão. Pelo contrário, não faltaram matérias com total tom de assessoria de imprensa, tanto para o governo federal, do PT, quanto para a Norte Energia, responsável pelo empreendimento considerado ilegal pela OEA.

Advogados ligados aos indígenas também foram expulsos e o deputado Padre Ton (PT) foi impedido de entrar na ocupação para conversar com os indígenas. Em matéria escandalosa do jornal O Globo, os indígenas foram acusados de serem garimpeiros e criminosos e em momento algum o jornal buscou ouvir o outro lado, ou seja, escutar os indígenas. Não se pede que O Globo e outros veículos adotem posição favorável aos direitos indígenas – historicamente a grande mídia sempre esteve ao lado do poder, de grandes empresas e contra os direitos humanos –, mas que ao menos tente fazer jornalismo e permita que o outro lado tenha espaço para se manifestar e, no mínimo, se defender de acusações caluniosas e que ao menos se finja fazer jornalismo e não assessoria de imprensa para o governo.

Interesses longe do povo – e do jornalismo

Em outra matéria, também do Globo, a assessoria é feita para a Norte Energia e para a Polícia Federal. Em momento algum indígenas e suas lideranças são ouvidas.

Direitos humanos, modelo energético e modelo fundiário não são temas interessantes a serem discutidos pelo padrão Globo de jornalismo – ou pelo padrão de qualquer outro veículo de imprensa, em muitos casos mesmo daqueles que dizem se alinhar com a esquerda, se autointitulando “progressistas”, mas que no fim estão apenas a serviço do governo que elegeram.

Quando trabalhadores de Belo Monte ou outras UHEs entram em greve, as manchetes dão conta de “vandalismo, violência, destruição, caos”; quando indígenas ocupam canteiros, a mídia repete os chavões, ampliando acusações ao ponto de chamar os ocupantes de criminosos, mas em momento algum se pergunta sobre os porquês reais de greves e ocupações.

Enfim, não interessa ao governo que os financia, às empresas que os patrocinam e aos patrões, com interesses claros e totalmente afastados do povo – e do jornalismo.

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Raphael Tsavkko Garcia é mestre em Comunicação