Na terça-feira (14/5), em Brasília, durante reunião do Conselho Nacional de Justiça, o ministro Joaquim Barbosa, que preside o órgão, fez mais uma de suas piadinhas contra os advogados. Ao discutir a norma adotada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo estabelecendo que o horário de atendimento só comece às 11 da manhã, disparou: “Mas a maioria dos advogados não acorda lá pelas 11 horas mesmo?”.
A brincadeira ficou sem resposta. De poucos meses para cá, nas ocasiões mais inesperadas, o célebre relator do processo do mensalão (oficialmente chamado Ação Penal 470), que em novembro assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal, alfineta, perfura ou esquarteja a imagem e a paciência dos causídicos. Entre uma risadinha e um resmungo, vai fixando seu estilo singular de proferir observações que atordoam o interlocutor. Sobra até para jornalistas. Em 5 de março, abespinhado com as perguntas dos profissionais da imprensa, ofendeu um repórter deste jornal com o seguinte disparate: “Me deixa em paz, rapaz. Me deixa em paz. Vá chafurdar no lixo como você faz sempre. Estou pedindo, me deixe em paz. Já disse várias vezes ao senhor”.
Depois, ainda bem, pediu desculpas, alegando que estava cansado e com dores nas costas. Desculpas aceitas, o Estado preferiu não encompridar o mal-estar e, como de costume, o excesso togado foi relevado. Ficou por isso mesmo.
Imprensa distorcida
Aqui, no Brasil, Joaquim Barbosa conta com o respeito dos advogados, dos repórteres, dos foliões de carnaval que se divertem com máscaras que reproduzem seu rosto implacável. Em terras estrangeiras também arrasa: em abril a revista Time elegeu-o como uma das cem personalidades mais influentes do planeta. Só que tem isto: o homem perde a calma com enorme facilidade. Olhos apertados, cenho tenso, por vezes um esgar vem retesar-lhe a boca. Pronto: a coluna vertebral o incomoda. A deusa Têmis sua frio. Dali pode sair um desaforo de uma hora para outra.
Mesmo assim, o ministro tornou-se o astro-rei político da imprensa brasileira. É um herói nacional. Tem admiradores em todas as classes, é aclamado em lugares públicos. Se quisesse, teria eleitores aos milhões. Sua conduta inflexível durante o julgamento da Ação Penal 470 lhe rendeu essa aura redentora, mais que de juiz, de justiceiro. A imagem de Joaquim Barbosa é a de um magistrado sanguíneo, inabalável. Se isso é bom ou ruim ainda não se sabe. O que se sabe, com toda a certeza, é que seu nome virou símbolo de credibilidade e de firmeza, enaltecido e festejado pelos órgãos de imprensa mais tradicionais e mais sérios do País.
Eis aí o primeiro Joaquim Barbosa: um juiz bravo, preparado, rabugento e honesto. Desempenhou um papel tão central na construção da altivez da Justiça brasileira que todos os seus destemperos estão perdoados por antecipação.
Mas há um outro Joaquim Barbosa. Se o primeiro já é bem complicado, o segundo talvez seja uma equação ainda mais intrincada, de mais difícil solução. Este não gosta muito da imprensa que celebrizou o primeiro: anda dizendo que é uma imprensa de direita. Traduzindo: o amor dos veículos de comunicação por Joaquim Barbosa parece que não é correspondido.
No início do mês ele compareceu a um seminário sobre liberdade de imprensa organizado pela Unesco em San José, na Costa Rica. Em sua conferência, lida em inglês, criticou a falta de “pluralismo” e a “fraca diversidade ideológica” dos “três principais jornais nacionais impressos” brasileiros, “todos mais ou menos inclinados para a direita no campo das ideias”.
Também falou sobre racismo: “No Brasil, negros e mulatos representam de 50% a 51% do total da população, mas não brancos são bem raros nas redações, nas telas de TV, sem mencionar a quase abstenção deles nas posições de controle ou liderança na maioria dos veículos de comunicações. É quase como se eles não existissem no mercado de ideias”.
Em tempo, o presidente do Supremo avisou que falava na condição de “cidadão livre e consciente”, procurando separar com rigor a sua visão pessoal das suas decisões de magistrado. A preocupação procede. Mesmo assim, é nesta altura que a equação do segundo Joaquim Barbosa mergulha num contorcionismo dialético labiríntico. Se ele está correto no diagnóstico que faz dos jornais brasileiros, somos obrigados a concordar que o primeiro Joaquim Barbosa é um ídolo da direita, uma direita à qual o segundo Joaquim Barbosa diz faltar pluralidade de opinião e diversidade étnica. Logo, o segundo Joaquim Barbosa é contra o culto do primeiro Joaquim Barbosa, pois ele vem de uma imprensa distorcida, parcial.
Jornais plurais
Mais: se ele reclama das “inclinações à direita” que enxerga nos jornais, isso significa que o segundo Joaquim Barbosa, “cidadão livre e consciente”, tem uma inclinação de esquerda. Ao que você, leitor, vai perguntar: “Mas como pode ser? Então, quer dizer que o grande responsável pela condenação dos réus do mensalão – muitos dos quais se declaram de esquerda – é ele mesmo de esquerda? E votou como a direita gostaria que ele votasse?”
As respostas para isso existem, mas elas nos levariam a outras dialéticas distantes, que aqui não vêm ao caso. O Brasil é assim mesmo: ministros da Corte Suprema, como outras autoridades da República, atuam como críticos de mídia. De resto, que há uma “inclinação à direita” na área de opinião dos “principais jornais” brasileiros já sabemos há tempos. De seu lado, os próprios “principais jornais” acharam por bem não perder muitas linhas com o media criticism do segundo Joaquim, pois talvez isso também fosse uma pirraça raivosa a deixar para lá.
É bem verdade que poderíamos ter jornais melhores, mais variados, mais plurais. A vida ficaria ainda mais movimentada: o primeiro Joaquim Barbosa brilharia nos diários inclinados à direita, enquanto o segundo faria a festa dos inclinados à esquerda. Mas esses não existem.
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Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM