Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O arcebispo vigilante da política sul-africana

No começo de maio, o arcebispo emérito da Cidade do Cabo, Desmond Tutu, declarou ao jornal sul-africano Mail & Guardian que não votará mais no Congresso Nacional Sul-Africano (CNA – ou ANC em língua inglesa). O líder religioso de 81 anos está aposentado da vida pública desde 2010, mas ainda se posiciona como uma das vozes mais críticas à política sul-africana. O partido, que chegou ao poder com Nelson Mandela em 1994, nas primeiras eleições multirraciais do país, destacou-se como a organização política mais combativa frente ao apartheid (desenvolvimento separado, em zulu).

Tutu justificou sua decisão a partir do descaso com a desigualdade social e a violência (“Desmond Tutu classifica a África do Sul como o país mais desigual do mundo”) e o crescimento das acusações de corrupção nos últimos anos. Em declarações recentes, o arcebispo também manifestou seu descontentamento com o enriquecimento pessoal, o clientelismo e uma sucessão de políticas ineficientes no combate a Aids, já que o país concentra o maior número de portadores da doença no mundo.

Durante os anos em que Mandela esteve na prisão, Tutu destacou-se como uma das lideranças mais expressivas no combate à política de segregação racial. Por seus esforços e clamores públicos contra o sistema da minoria branca, o religioso foi condecorado em 1984 com o Prêmio Nobel da Paz (feito repetido por Mandela nove anos mais tarde, em 1993). Desmond Tutu foi o primeiro negro a assumir um arcebispado durante a vigência do apartheid, em 1986, cargo em que se manteve até 1996.

Medidas que ferem a democracia

Esta não foi a primeira vez que o líder religioso mostrou o seu descontentamento com o CNA e, sobretudo, com o atual presidente, Jacob Zuma. Em 2009, durante a campanha em que o então candidato era favorito, Tutu pediu reflexão e exame de consciência dos eleitores antes de escolherem o seu representante. As principais observações do arcebispo, que é amigo pessoal de Mandela, apontam que o partido tem perdido de vista os ideais que conduziram a luta antiapartheid. Já no caso específico de Zuma, o político acumula uma série de polêmicas nos tribunais sul-africanos. Entre as acusações estão os crimes de corrupção, fraude, extorsão, lavagem de dinheiro e estupro.

Em 2011, outra polêmica envolveu Tutu e Zuma. O arcebispo convidou o Dalai Lama para a comemoração de seu aniversário de 80 anos. No entanto, o líder religioso oriental não pode comparecer à festividade, pois o visto para entrada no país não foi expedido a tempo. O atraso teria sido motivado por pressões do governo chinês. O sul-africano afirmou que episódios como esse não se repetiam nem durante o apartheid.

A decisão de Tutu em não mais apoiar o CNA representa um grave momento na política sul-africana. O partido que participou do processo de transição para a democracia multirracial tem levado ao poder políticos que não estão preparados para a condução do país. Após Mandela, os chefes de estado têm acumulado acusações de corrupção e as ações de inclusão da população negra têm ficado em segundo plano. A nova África do Sul é uma realidade recente e que tem sido sistematicamente violada pelo regime político. A opinião de Desmond Tutu demonstra que após o apartheid, o país ainda adota medidas que ferem a democracia e que impedem o seu desenvolvimento.

África do Sul sem Mandela

Outro ponto destacado por Desmond Tutu em sua entrevista ao Mail & Guardian foi a idade avançada e o frágil estado de saúde de Nelson Mandela. No final de abril, as primeiras imagens de Madiba, como é carinhosamente chamado em sua tribo, foram divulgadas após sua última internação. Os registros, que mostravam o primeiro presidente negro sul-africano claramente abatido, causaram polêmica no país. Retirado da vida pública desde o início dos anos 2000, a última aparição de Mandela foi na cerimônia de encerramento da Copa do Mundo de 2010.

Para Tutu, os sul-africanos precisam se conscientizar que a morte de Nelson Mandela é algo inevitável. Se a população não estiver preparada para este momento, de acordo com o arcebispo, a dor pode ser mais intensa.

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Renata de Paula dos Santos é jornalista e mestranda em Comunicação e pesquisadora da história sul-africana e do apartheid