No próximo ano, a sociedade brasileira vivenciará um debate histórico por conta dos 50 anos do golpe de 1964 e a instituição de um regime político comandado pelos militares com expressiva participação e apoio civil, até mesmo na montagem e financiamento do aparato repressivo. O debate vem sendo alimentado pelas revelações da Comissão da Verdade, segundo a qual a “tortura começou antes da luta armada”.
Editorial de O Globo intitulado “Limites da Comissão da Verdade” (21/5/2013) argumentou que a Lei da Anistia não pode ser revista e impede a punição dos torturadores da ditadura militar. Esta posição é coerente com a história do jornal que publicou na primeira página, em 22 de novembro de 1969, o editorial intitulado “Torturas?”, no qual investiu contra a imprensa internacional, afirmando que jornais franceses, alemães, belgas, austríacos, ingleses, holandeses e italianos estavam publicando frequentemente matérias fantasiosas a respeito de torturas no Brasil. O Globo ainda lembrou que denúncias sobre tortura já haviam ocorrido, como no governo Castelo Branco, e cita o general Ernesto Geisel como o responsável por uma rigorosa sindicância, apurando que nenhuma violência ocorrera.
O pano de fundo do debate sobre a anistia situa-se na visão que rediscute a ditadura, atribuindo responsabilidades pela emergência do autoritarismo em 1964 tanto à direita quanto à esquerda. A abordagem dissocia as esquerdas das conquistas democráticas ao defender que a esquerda lutou contra a ditadura, mas não por uma causa democrática. Ou seja, a direita e a esquerda eram antidemocráticas. A primeira defendia a ditadura militar e a segunda a ditadura do proletariado. Os dois lados teriam praticado a violência política como decorrência de suas visões sobre mudanças no Estado, o que justificaria a Lei de Anistia de caráter recíproco votada em 1979 entre governo e oposição.
Existência prolongada
A violência sempre foi cultivada pelos dirigentes militares, situando-se no centro da estratégia para consolidar o autoritarismo, cujo propósito era desmobilizar e despolitizar a sociedade e impor um modelo econômico que privilegiasse a rápida acumulação capitalista naquele contexto de Guerra Fria. A escolha da força para obter obediência levou os órgãos de segurança a uma posição de destaque. Os órgãos da polícia política eram um dos núcleos centrais do poder. Destacava-se o SNI, que não era um órgão executante, porém o mais importante órgão de informação pelas prerrogativas de que dispunha para vigiar e acompanhar áreas da sociedade civil, política e do próprio aparelho de Estado, incluindo os serviços de inteligência das Forças Armadas espalhados por diversas regiões do país.
O SNI era comandado por generais do Exército, entre eles Golbery do Couto e Silva, o seu criador em 1964 e idealizador da distensão posteriormente executada por Geisel, chefe da Casa Militar de Castelo Branco, que negou a existência de abusos cometidos nesse governo e, após deixar o cargo de presidente, admitiu numa entrevista a historiadores do CPDOC/FGV a tortura como meio necessário para obter confissões.
Embora tenha sido o único a se manifestar sobre essa questão, vale mencionar que as ações de extermínio e tortura tiveram o aval dos presidentes militares, segundo a Comissão da Verdade. Essas informações só revelam de forma mais nítida o significado da ideia de que Geisel e Figueiredo foram os artífices da transição para a democracia, posição amplamente divulgada por representantes da imprensa e defendida por um colunista de O Globo na sua posse na Academia Brasileira de Letras. A democracia, nessa concepção, corresponde à forma de governo que garante os plenos direitos somente para as classes proprietárias.
A revelação de Geisel, o quarto general a exercer o poder após a deposição do presidente João Goulart, coloca em questão a imagem do dirigente militar comprometido com a legalidade e com a condenação dos excessos de violência praticada pelo aparato repressivo, sob controle da linha dura. Desse modo, abrem-se novas vias de pesquisas sobre um dos períodos mais sombrios da história republicana brasileira no século 20. Ressurgem as polêmicas não apenas sobre as razões da liberalização, mas também com relação aos papéis desempenhados pelos grupos militares na organização do regime que se tornou conhecido por sua longa duração.
De fato, em comparação com seus similares na América Latina, o regime autoritário brasileiro distinguiu-se pela prolongada existência e preservação da capacidade de intervenção militar, com a presença no poder de um grupo dirigente voltado para a questão da institucionalização política, seja ao assumir a condução do Estado em 1964, seja ao comandar a lenta transição até a constituição de um governo civil em 1985.
Instituição militar não foi questionada
De acordo com essa abordagem, as revelações de Geisel apoiando a tortura e o extermínio de militantes da esquerda podem ser melhor avaliadas desde que possamos esclarecer até que ponto as ações do aparelho repressivo controlado pela linha dura, em que pesem a sua autonomia, respondiam às metas traçadas pelas altas figuras do Estado, não desafiando a autoridade do presidente, nem tampouco desgastando a imagem das Forças Armadas. Se não devemos diluir completamente as fronteiras entre essas duas correntes que tinham influência na direção do Estado, é preciso repensar as relações entre os grupos levando em conta que a longa duração do regime exige a ênfase na complementaridade dos papéis por eles desempenhados. Embora fosse verdadeiro o empenho de Geisel e Figueiredo para controlar as ações dos órgãos de segurança do aparato repressivo, os presidentes não se comprometeram em desmontá-lo, mesmo recebendo das oposições demonstrações de apoio manifestadas nas condenações a qualquer ato de violência.
Os sinais de que os dirigentes pretendiam chegar a uma fórmula política pós-autoritária não democrática ficam evidentes se colocarmos em foco a Lei da Anistia aprovada pelo Congresso em 1979 no governo Figueiredo, antecedendo a reformulação partidária idealizada por Golbery. A anistia foi debatida da perspectiva da oposição democrática, com apoio de entidades da sociedade civil, que a defendia ampla, geral e irrestrita, implicando a revisão das medidas punitivas que afetaram desde 1964 o meio civil e militar, bem como a cobrança judicial dos responsáveis por atrocidades repressivas tais como tortura e assassinatos de presos políticos.
Da ótica dos dirigentes, principalmente do aparelho responsável pela dura repressão empreendida, a proposta de anistia anunciada pelos setores da oposição foi encarada como um ato de revanchismo. Acabou prevalecendo a proposta negociada com a oposição parlamentar de uma anistia recíproca que enfatizava a fórmula do esquecimento dos atos repressivos praticados no passado. Ao não permitir qualquer revisão judicial das suas ações, o aparelho militar protegeu sua autonomia, reforçando o sentimento de impunidade e de imunidade das Forças Armadas. A sociedade, por sua vez, deixou de conhecer os agentes diretamente implicados nas atrocidades cometidas e as engrenagens dos aparatos repressivos, fundamentais na sustentação do regime autoritário. Como não foram cobradas responsabilidades pelos atos repressivos, a instituição militar não foi colocada no centro de um amplo debate nacional sobre os papéis que vinha cumprindo na esfera política e a opinião pública não colocou em discussão os valores éticos necessários para a construção de uma autêntica democracia.
A influência das Organizações Globo
A distensão/abertura distinguia-se do projeto de democratização aspirado por diversos setores da oposição. A implementação das medidas liberalizantes iniciada por Geisel estava condicionava à institucionalização de um tipo de regime pós-autoritário com restrições democráticas, o que significa que no projeto de distensão/abertura, a retirada das Forças Armadas da direção do Estado implicava mais do que a sua substituição por um esquema civil de confiança baseado no partido do governo, de modo a preservar os interesses institucionais das corporações. Como integrantes do aparelho de Estado, os militares deveriam continuar a exercer sua influência sobre as questões em discussão pelos atores do sistema político e da sociedade civil, a fim de garantir a institucionalização de um poder político voltado, sobretudo, para moderar a participação popular tanto na constituição de governos quanto na formação das suas decisões.
Embora o projeto dos dirigentes militares tenha sofrido derrotas no campo institucional desde 1964, não há como negar que os resultados favoráveis na economia durante o governo Médici criaram um clima de euforia, sobretudo entre segmentos da classe média e do empresariado e contribuíram para que os representantes do autoritarismo extraíssem daí uma percepção de êxito do regime. Como decorrência, os dirigentes buscaram ampliar a legitimidade do regime com a liberalização, que foi implementada no rastro do milagre econômico e encontrou condições para se viabilizar após 1974 e se desdobrar em uma transição negociada em virtude das tradicionais instituições do sistema político não terem sido eliminadas, mas manipuladas sob controle autoritário.
No final do governo Figueiredo, depois de vinte anos de autoritarismo, as pressões para ampliar a democratização intensificaram-se, sobretudo com as mobilizações populares a favor das “Diretas Já!”. O crescimento das forças de oposição, todavia, não foi suficiente para impedir as continuidades das estruturas, grupos e culturas legitimadoras do autoritarismo, seja no âmbito do Estado e do sistema político, seja no campo da sociedade.
Responsável pela montagem do aparato repressivo contra opositores, o Exército preservou seu papel interventor na política, já que o Congresso Constituinte de 1988 não modificou as antigas cláusulas constitucionais, cabendo-lhes a garantia da lei, da ordem e também a dos poderes constitucionais. As corporações militares mantém a doutrina de que 1964 foi uma revolução salvadora diante da ameaça comunista. Devemos assinalar também a forte presença de elites políticas conservadoras herdeiras do autoritarismo, cujo exemplo mais visível foi a eleição pelo Colégio Eleitoral de Sarney, quando o país, após a morte de Tancredo, viu o comando da transição negociada ser assumido por um político da antiga UDN, da Arena e do PDS, identificado como um civil de confiança dos militares.
Finalmente, cabe reconhecer a expressiva influência do mais importante monopólio na área das comunicações de massa, as Organizações Globo, cuja expansão empresarial se deu durante a ditadura em troca de apoio político ao regime de barbaridades praticadas contra cidadãos brasileiros. Esse representante da imprensa vem hoje cumprindo papel semelhante à crise política de 1964, qual seja, o de desestabilizar os governos e fragilizar os representantes políticos comprometidos com programas de caráter popular.
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Aloysio Castelo de Carvalho é professor da Universidade Federal Fluminense