Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O Dreyfus digital

Em julho de 2007, um helicóptero Apache trucidou uma dúzia de civis e dois jornalistas da Reuters em Bagdá. Ao ver em vídeo a razia e a chocante euforia dos agressores, o soldado Bradley Manning, analista do serviço de inteligência do Exército americano lotado na capital do Iraque, decidiu pôr a boca no trombone. Ou melhor, soprar o apito, pois é isso que um whistleblower faz. Aqui, soprador de apito designa o mau árbitro de futebol; nos países de língua inglesa, o denunciante de injustiças e malfeitorias.

Com acesso livre a documentos diplomáticos e militares, Manning copiou digitalmente milhares de telegramas que deixavam muito mal a política externa americana e tentou entregá-los, em janeiro de 2010, ao Washington Post, que não o levou a sério, e ao New York Times, que tampouco lhe deu atenção. Em 3 de fevereiro, sem melhor alternativa, repassou o papelório, anonimamente, para o site WikiLeaks e seu whistleblower mor, Julian Assange, que negociou sua divulgação pelos jornais mais importantes da América e Europa.

Deu no que deu. Em 29 de maio daquele ano Manning foi preso por espionagem, hackerismo e traição à pátria.

Enquadrado no Espionage Act de 1917, relíquia da 1ª Guerra Mundial a que o governo Obama não se vexa de recorrer até contra meros dissidentes, Manning passou os dez primeiros meses de confinamento numa solitária, sem direito a banho de sol e exercício físico, às vezes nu – tratamento que o relator especial da ONU para assuntos relacionados a tortura, Juan Méndez, considerou “cruel e desumano”.

Informações secretas

A punição em si foi “uma ilegalidade”, e a própria juíza à frente da corte marcial encarregada do processo, a coronel do Exército Denise Lind, assim a entendeu, tendo já prometido um abatimento de 112 dias na pena a ser cumprida por Manning, caso ele seja condenado. Se o condenarem à prisão perpétua, como pleiteia a Casa Branca, como será feito esse abatimento?

Enquanto mofava atrás das grades, Manning foi acusado de buscar notoriedade, ser instável, suicida, indeciso e… homossexual. Gay ele é, desdouro nenhum, e de uma coragem impressionante. Sabia o que o esperava e levou até o fim seu intento de expor as mazelas da política externa americana, não a Bin Laden ou qualquer outro inimigo dos Estados Unidos, mas ao povo americano. “Eu só queria provocar um debate doméstico sobre o papel dos militares e de nossa diplomacia em geral”, declarou Manning aos seus inquisidores. Não traiu a pátria, só os seus superiores hierárquicos, de resto, sustentados pelos impostos pagos pelo principal beneficiário das denúncias.

Espião e traidor para o governo, herói até para alguns militares que não se identificam com as atrocidades cometidas por seus pares no Iraque e Afeganistão, nem com as intrigas, mentiras e casos de corrupção da política externa americana comprovados pelos documentos vazados, Bradley Manning ressuscita na era digital o caso Dreyfus.

Acusado de traição ao Exército francês, num processo fraudulento detonado por uma carta, em 1894, e com forte ingrediente antissemítico, o coronel Alfred Dreyfus acabou condenado à prisão perpétua na Ilha do Diabo. Defendido publicamente pelo escritor Émile Zola, saiu inocentado de um segundo julgamento. Há vários pontos em comum entre os dois casos (a substituição do antissemitismo pela homofobia é um deles), mas, além de não se declarar totalmente inocente, como o militar francês, Manning não contou com um defensor tão poderoso quanto Zola, longe disso.

A grande imprensa, mordida com a subalternidade a que o Wikileaks a relegou e receosa de ser eventualmente atingida pela paranoica política de segurança de Barack Big Brother Obama, pisou em ovos o tempo todo. Os templários da Primeira Emenda do Partido Republicano, com o cinismo que lhes é peculiar, guardaram suas lanças para outras cruzadas. Os habituais bastiões europeus das liberdades civis pouco se mexeram. A Anistia Internacional também ficou em cima do muro. Nem a comunidade gay prestou a solidariedade esperada.

E no entanto, Manning não ficou órfão nessa luta contra, acima de tudo, a ideia de que delatar crimes é muito pior do que cometê-los. Razão pela qual ele está preso e ameaçado de apodrecer atrás das grades, ao contrário de criminosos de alto escalão como Lewis Scooter Libby (artífice dos falsos documentos que levaram à invasão do Iraque, que só pegou 30 meses de cadeia), o ex-diretor da CIA Leon Panetta (que passou informações top secret à produção de A Hora mais Escura e ainda não foi convocado a prestar declarações) ou o ex-chefe da equipe de Obama na Casa Branca Jim Messima (que nem sob suspeita de traficar segredos com lobistas da indústria farmacêutica perdeu a chefia da campanha política do presidente).

Fim da guerra

Um punhado de gente séria, lúcida, combativa e influente, inclusive no quarto poder, como o colunista Glenn Greenwald, do Guardian, cerrou fileiras com o hacker do bem de Oklahoma. ONGs foram criadas para mobilizar apoio popular e ajudá-lo a pagar as custas da defesa. Membros do Parlamento islandês indicaram Manning ao Nobel da Paz por creditarem o desmascaramento de alguns ditadores do Oriente Médio e até mesmo a Primavera Árabe ao vazamento de correspondência diplomática patrocinado por ele. Pelos mesmos motivos, três laureados com o Nobel da Paz pediram a Obama que lhe assegurasse um julgamento isento, justo. Difícil. O presidente já o considerava culpado antes de ouvir o veredito da corte marcial, previsto só para daqui a três meses.

Mais do que lembrar o caso Dreyfus, o Cablegate bastante se assemelha ao vazamento dos Documentos do Pentágono, em 1971, quando Daniel Ellsberg também foi acusado de trair a pátria, colaborar com o inimigo e ameaçado com a prisão perpétua. No final das contas, os verdadeiros culpados, entre os quais o presidente Nixon, perderam a parada. Assim como o processo contra Dreyfus ajudou a desmantelar o movimento monarquista na França, a “traição” de Ellsberg foi fundamental para apressar o fim da guerra no Vietnã. Que o Cablegate também tenha um final feliz. Para Manning, para a reputação de Obama e para o futuro da verdade e da justiça.

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Sérgio Augusto é jornalista, colunista do Estado de S.Paulo