Uma ode à alegria e, talvez, à esperança: Gilberto Gil compôs “Aquele Abraço” num momento de especial angústia – a necessidade de exilar-se, após ter sido preso, com Caetano Veloso, em 1969 –, em um contraste claro com o sentimento de medo que se espalhava naquele período em que a ditadura entrava em sua fase mais violenta. A canção se tornou um ícone entre tantas as que exaltam a beleza do Rio e o “espírito” do carioca.
O editor de cidade do jornal O Globo tem percepção diferente. Após nove anos fora, retornou em janeiro e exercitou seu “distanciamento crítico”, demonstrando surpresa com a precariedade dos serviços e as diversas manifestações de incivilidade que encontrou. “No Rio, tudo parece tocado pela incompetência ou pela falta de qualidade”, escreve, em sua coluna de estreia, no sábado (8/6).
Batizada justamente de “Panorama Carioca”, a coluna diz mais sobre seu autor: os ambientes que ele e seus amigos frequentam, nos quais não recebem o atendimento adequado, e de onde, seguramente, continuarão a surgir muitas pautas. Não leva muito em consideração referências históricas e culturais para esse comportamento: “Prefiro acreditar nos mais pragmáticos: falta investir em treinamento”.
Legado insuspeito
É precisamente este o enfoque predominante na edição especial que o Globo a Mais, exclusivo para iPads, publicou no dia seguinte (domingo, 9/6), sobre “o novo Rio que está nascendo” com os investimentos que vêm alterando o espaço urbano para acolher a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Não há qualquer “distanciamento crítico” diante das afirmações sobre a necessidade de fortalecer a “marca Rio de Janeiro”, composta por “alegria, beleza, cultura”, porque já naturalizamos essa maneira de encarar tudo como negócio e mercadoria.
Se é assim, tampouco deveria causar espanto o comentário sobre o papel dos megaeventos como “oportunidade para mudar o comportamento de todos os cariocas”, o que representaria um avanço no “processo civilizatório da cidade”. Legado insuspeito esse, nunca antes referido: não se trata apenas de modernizar a cidade e “revitalizar” áreas degradadas, desprezando-se a vida que existia ali; os megaeventos nos trarão esse imenso benefício da civilização, sob o patrocínio da Fifa e das marcas eleitas. Agora, finalmente, podemos entender o sentido de medidas como a tentativa de proibição da venda de acarajés nos arredores do estádio – perdão, arena – da Fonte Nova, em Salvador. Não foi dessa vez – esse povo tosco, primitivo, ignorante às vezes é muito resistente –, mas não faltará ocasião.
Quanto a outro legado dos megaeventos – o lucro a ser obtido pelos investidores –, nenhuma palavra.
A cidade para quem?
Extensa e multimídia, a publicação não deixa de abordar, ainda que brevemente, as críticas ao processo de desapropriação de imóveis e remoção de comunidades no caminho das obras, embora mencione em apenas uma frase o caso da Vila Autódromo, que há vinte anos é alvo de cobiça e desde 2005 vem sofrendo pressões da prefeitura em nome, agora sabemos, da “civilização” – primeiro os Jogos Pan-Americanos de 2007, agora as Olimpíadas –, sob os mais distintos – e falsos – argumentos.
O jornal não deixou de ouvir o “outro lado” ao tratar das remoções e da especulação imobiliária, na voz de um representante do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas. Reportagem de fato, porém, dessas que obrigam a sujar os sapatos, nem pensar.
Há inúmeros pesquisadores que apontam e condenam esse processo de gentrificação que resulta desse tipo de intervenção urbana: “revitalizações” que transformam a paisagem e atraem moradores e frequentadores de melhor poder aquisitivo, expulsando para longe os indesejáveis que ocupavam o lugar. Nenhum deles comparece na publicação, que cita a palavra “gentrificação” apenas uma vez, numa pergunta durante entrevista com o prefeito carioca. Que se sai muito bem, relativizando o problema e expondo seu “medo” da especulação imobiliária.
Na mesma edição de domingo, no caderno principal, O Globo traz reportagem de página inteira sobre “o novo Harlem”, “a mais nova fronteira da gentrificação em Nova York”, progressivamente habitado por uma classe média que vem “branqueando” a população local – os 94,6% de negros em 1980 caíram para 67,3% no censo de 2010, segundo a matéria.
Na sua entrevista, o prefeito do Rio esbanjou otimismo e manifestou sua esperança pós-olímpica numa “cidade integrada, mais justa, o melhor lugar do Hemisfério Sul para viver, trabalhar e visitar”. Resta saber quantos poderão pagar por isso. Para os outros, aquele abraço.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)