Diferentemente de outras épocas, o século 21 abre um novo “portal” na história da humanidade. Antes, porém, de nomear o que novo pontuamos como novo, é indispensável ir-se às origens. Do Egito antigo até fins da Idade Média, predominou a relação entre poder e riqueza. Na modernidade, outra parceria foi estabelecida: poder e capital. Em comum aos dois tempos, há o fato de riqueza e capital terem sido os protagonistas pela expansão do conhecimento, condição da qual sempre se serviram as estruturas dominantes, conforme, há muito, Michel Foucault sinalizou, principalmente em três obras: As palavras e as coisas, Arqueologia do saber e na coletânea de ensaios que resultou na edição brasileira com o título Microfísica do poder.
O parágrafo introdutório teve a finalidade de pontuar breve mapeamento, no tocante a como, ao longo do percurso histórico, o conhecimento foi alvo de subordinação a uma forma de poder cujo exercício se pautou pela junção de três aspectos: vontade + interesse + necessidade, ou seja: a vontade egóica, por vezes tirânica, do soberano; o interesse, ditado por razões estratégicas e, por fim, a necessidade, orientada por projeto de expansão e desenvolvimento. Nesse modelo, o conhecimento atuou como alavanca de consolidação afirmativa dos impérios e, adiante, das nações.
Diante do exposto, eis que se faz necessária a retomada da frase inaugural desta escrita. Afinal, que “portal” novo oferece o século 21? O conhecimento é (e será) a “ferramenta” insubstituível para a geração de mais riqueza e de lucro. O princípio tanto é válido para a preservação da vida produtiva das empresas (em quaisquer ramos) quanto para a afirmação da vida ativa das pessoas.
No novo cenário da economia mundial, arrefece a competitividade. Quem, nele, quiser sobreviver terá de, progressivamente, investir na atualização do conhecimento. As empresas dependem, cada vez mais, de ofertas de produtos diferenciados que atendam expectativas de consumidores. Os profissionais, por sua vez, encontrarão crescentes graus de exigência; portanto, quem não se aprimorar intelectualmente encontrará menos possibilidades de atuarem nas áreas de suas escolhas. A fórmula é cruel e impiedosa. As empresas que, permanentemente, não investirem em pesquisa amargarão pequena sobrevida até a falência, bem como os profissionais acomodados e preguiçosos serão banidos do mercado de trabalho para o qual se destinaram.
A nova geração
A abordagem proposta no tópico de abertura é o gancho para o foco real do presente tema: de um lado, o que está posto, como exigência, para a atual geração; de outro, como esta se vem comportando. Que perfil majoritário a juventude tem adotado? Jovens, ao redor dos 20 anos, já nasceram cercados e contemplados por telas com intensa oferta de informação, games, ferramentas comunicacionais e interativas de toda ordem. É uma geração herdeira da tecnologia, para bem e para mal.
Paradoxalmente, em relação a um painel de tantas disponibilidades, o que se constata na experiência universitária (incluindo o quadro dominante no ensino médio), é uma tendência à passividade, revelando estado de alheamento, independentemente do grau de provocações ofertado. Na contrapartida, percebe-se uma espécie de culto exacerbado à alegria, descontração, próprio de quem vê o mundo como imensa usina geradora de euforia… Arriscando um trocadilho, “euforia” pode sugerir fonética e graficamente a expressão eu-fora, isto é, uma subjetividade esgarçada, estilhaçada que, julgando-se inserida, com o aval das redes sociais e outros suportes tecnológicos interativos, não se dá conta de estar na periferia dos reais e graves acontecimentos que, verdadeiramente, movem o mundo.
A geração século 21 parece, ainda, não haver percebido os sinais do futuro: são duas paisagens paralelas e, absolutamente, conflitivas. Uma oferece horizonte sombrio, repleto de espessas nuvens, a indicarem intensas e tensas “tempestades” de toda ordem; outra exibe horizonte densamente iluminado e resplandecente a prometer dadivosas descobertas e imprevisíveis invenções. Ciência e tecnologia, alimentadas por contínua expansão do conhecimento, tornarão os avanços e as conquistas aferidos entre os séculos 18 e 20 algo ultrapassado e primário. Inteligência e imaginação haverão de transformar, radicalmente, o modo como, no presente, vivemos, a exemplo de práticas, hoje, banais e, ao mesmo tempo, inimagináveis nos anos 1980.
É exatamente por acreditar em altos saltos qualitativos a serem doados pelo futuro que se impõe, desde já, armazenamento de saber qualificado a fim de a atual juventude poder encontrar lugar seguro no devir. O dado preocupante decorre de um apego inconsequente que o jovem de hoje dedica ao presente fluido, ignorando as lições legadas pelo passado e negando um olhar prospectivo para os acenos do futuro. O jovem desta geração está mergulhado no devaneio do que Debord classificou de “presente contínuo”. Neste ponto, cabe tentar um diagnóstico, de modo a compreender-se o que está ocorrendo na subjetividade do jovem.
Os impactos subjetivos da era digital
A nova geração já nasceu rodeada por um real virtualizado. Obviamente, essa nova condição haveria de trazer inevitáveis mutações. Boas? Sim… Más? Sim… Não há benefícios dos quais, também, não se aproprie o mal; portanto, não será um recorte com base na moral maniqueísta que tornará a reflexão criticamente rentável. Ao contrário, a era digital impõe o olhar da relativização com o qual se contemple o leque de benefícios, bem como se identifique o elenco de malefícios. Para tanto, reproduzo uma fórmula já proposta em publicação anterior: +I + D= -R + D: +D – D
A fómula é de fácil equacionamento: vive-se a época da mais intensa circulação da informação, em parceria com imensa rede de difusão. Esta é a resultante dos benefícios. A questão são efeitos dela: tem-se constatado acentuada baixa de retenção, associada a elevada dispersão. Este é o malefício do qual provém a consequência maligna: tendência à depressão, em aliança com a diminuição do desejo.
O diagnóstico é preocupante, em razão do quanto a cadeia de malefício afeta a relação entre a subjetividade e as situações geradas pela realidade. O jovem da era digital, por conta da dispersão perde a paciência exigida pela reflexão, substituindo-a pela excitação ansiosa. Não se contempla mais a vida: transita-se nela, freneticamente…
As experiências prazerosas, bem como as sofridas não ficam retidas na memória o tempo necessário para delas extraírem-se ensinamentos. Assim, o prazer é rebaixado à condição de “satisfação” e a dor é reduzida a sofrimento. Nessa mutação negativa, a vida vai perdendo densidade, intensidade, aventura, tornando-se um “seguir vivendo” sem maiores encantos, sem maiores embates. O questionamento, prática indispensável à expansão do pensar, é substituído pela brevidade sedutora da informação. Para exigências maiores requeridas pela escola e, adiante, na universidade, a grande maioria dos estudantes recorre ao Google e, sem o menor pudor, entram em sites, recortam e colam… Quando flagrados pela fraude, reagem espantados, alegando que tal prática é “pesquisa”…
A realidade como maquiagem
O cenário desenhado no tópico anterior indica, com clareza, quanto o jovem da era digital e amante de telas que se somam a fones de ouvido, em quaisquer situações, preza e cultiva uma vida fake. Sim, o regime da falsificação é o seu paradigma. Os games suprem dilemas, adiam problemas, preenchem, enfim, o vazio. Ele teme o silêncio e rejeita o recolhimento, razão pela qual ele precisa tanto falar, se possível o tempo inteiro, seja na rede, nos bares, ou mesmo, durante as aulas. Do mesmo modo que a maquiagem cria outro rosto, assim, também, a realidade deve ser vista no recorte desejado, ou seja, aquilo que torne tudo suave, leve e prazeroso… Realidade e fantasia se mesclam, diluindo o sentido do “sacrifício”, além de adiar, ao máximo, o ingresso na vida adulta.
O perfil, aqui traçado, não deixa dúvida quanto ao fato de que um jovem de vinte e poucos anos, sob o ângulo emocional, se comporta como adolescente. Mesmo correndo o risco de ser contestado por especialistas, ouso afirmar que o crescente consumo de drogas e ingestão de bebida alcoólica por adolescentes e jovens, nas últimas décadas, se origina no modelo cultural implantado. A realidade é vista, pelos jovens, como maquiagem, por haver, do outro lado, aqueles que criam a “maquiagem”.
A “indústria cultural”, conceito proposto por Adorno, ao refutar a expressão “cultura de massa”, evoluiu para imensa e sofisticada “usina de cosméticos”. A “maquiagem” construída é perfeita: ela se presta tanto para exibir eventos espetacularizados quanto o “teatro dos horrores”, sob a forma de atentados, catástrofes arquitetadas pela natureza, atos isolados de psicopatas etc… Como a codificação tem os ingredientes da maquiagem, tudo é filtrado de modo a ficar na superfície, na mera aparência que, dias após, se dissipa… A dissipação deriva da rápida oferta midiática de novos “acontecimentos impactantes”. É dessa “sintaxe da substituição” que decorre, no jovem receptor, o processo de “apagamento” do impacto anterior. Este é o fator responsável pela morte da memória.
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Outras máquinas, novas mentes (1) – I.L.
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Ivo Lucchesi é ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA (RJ)