Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Perspectivas do fundo do poço

Diz o ex-ministro Delfim Neto que a maioria dos gestores públicos só aprende quando sai do governo. Posso confirmar esta boutade com o sofrimento próprio. Durante seis anos e meio (2005-2012), fui diretor do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), tentando cumprir minhas funções de gestor dentro da tiranossáurica burocracia brasileira. Quando estamos na cadeira de gestores, o dia-a-dia é tão massacrante que nos impede de refletir sobre as decisões das quais depende nosso futuro. Sem o poder na mão, sobra-nos a força das ideias. Assim, minha dupla condição atual de experiência e de distanciamento permite-me confirmar a intuição que tive ao exercer o cargo de diretor: não há futuro para os institutos do MCTI no sistema de administração pública direta. Ou todos os institutos do MCTI se transformam em organizações sociais (OS), ou irão para o caminho do esquecimento e da irrelevância.

Os institutos do MCTI têm um papel essencial no Brasil. São os nossos equivalentes aos laboratórios nacionais dos EUA. Esses laboratórios, como o Jet PropulsionLab, Fermi Lab e Los Alamos, fazem pesquisa e desenvolvimento para fins públicos, cumprindo missões de Estado. No caso brasileiro, nossos institutos foram criados para dar ao Brasil competências em áreas como Pesquisa Espacial, Amazônia, Computação Científica, Tecnologia Industrial e Biocombustíveis. Só que o modelo de gestão da maior parte destes institutos parou no tempo. Pior: este modelo está devagar e sempre destruindo o futuro destes institutos. Para entender a situação, relato a seguir o caso que vive hoje o Inpe, o maior instituto de P&D do MCT.

Comecemos pelo óbvio ululante rodrigueano: o Inpe chegou ao fundo do poço. Estamos paralisados pelo medo. Os órgãos de assessoramento e auditoria, que deveriam ser apoios essenciais do gestor público, tornaram-se feitores do administrador. Não basta estar certo. É preciso fazer do jeito que os outros querem. Só que esses outros não têm a menor responsabilidade em produzir novas teorias científicas, novos sistemas, novos satélites.

Veja-se o caso da relação entre o Inpe a Advocacia Geral da União (AGU). A AGU foi criada pela Constituição de 1998, para assessorar os gestores públicos da administração direta e das autarquias sobre a melhor forma de cumprir as missões de cada instituição, dentro do marco legal. Só que o marco legal hoje é tão bizantino e atrasado que sua interpretação estrita não permite ao Inpe operar. Assim, órgãos de assessoramento como a AGU passam a ditar o que o Inpe pode fazer. Hoje, em lugar da AGU trabalhar para ajudar o Inpe, é o Inpe que trabalha para agradar a AGU.

Exemplo americano

Vejamos alguns exemplos de como os pareceres da AGU, que são interpretações da Lei, restringem consideravelmente a gestão do INPE. Quase tudo não pode. Um advogado da União escreveu num parecer que é ilegal que o Inpe receba recursos da Finep. Outro mandou o Inpe abrir sindicância contra um servidor que usou termos como “salvo melhor juízo” num relatório interno. Outro parecer proibiu o Inpe de usar a Lei de Inovação. Doutra feita, negou-se ao Inpe o direito de contratar sua fundação de apoio que está previsto no Decreto 7430/2010. Aprovou-se um parecer que diz para o Inpe parar o programa de satélites sino-brasileiros CBERS e suspender os contratos industriais vigentes. Embora a Lei dê ao gestor o pleno direto de decidir de forma independente da AGU, quando ele ousa discordar da AGU, é objeto de denúncias à CGU, ao TCU e ao Ministério Público feitas pelos mesmos advogados que deveriam lhe assessorar.

Será que a AGU está errada? Ou será que é a Lei que permite interpretações e ações como as citadas acima? No meu entender, o problema não está na AGU, mas sim, numa legislação totalmente anacrônica. Na administração pública direta, todo gasto de recursos está associado a bens e serviços que tem de ser entregues nos prazos e preços contratados. Ora, esta lógica de controle prévio e de só poder comprar “bens de entrega líquida e certa” pode servir para cadeiras, mesas e serviços de jardinagem. Nunca poderia ser usada para custear atividades de P&D em tecnologia espacial, astrofísica, computação e biodiversidade. Mas é. O gestor hoje contrata o desenvolvimento de um satélite como quem compra carros.

Como dizia Millôr, em tempos de opressão o livre-pensar é só pensar. Hoje, discordar e pensar diferente está proibido. O entendimento do direito administrativo foi subtraído dos gestores e passou a ser exclusivo dos órgãos de assessoramento e auditoria. A contradição se consolidou. Quando o gestor não pode mais decidir livremente em prol de sua instituição, ele deixa de ser gestor e se converte em marionete.

Também estamos estrangulados em nossa gestão das pessoas, pois o Regime Jurídico Único não funciona em instituições de Ciência e Tecnologia. O RJU opera numa lógica obtusa. Fixa um número de cargos para cada instituto, numa perspectiva de permanente reposição de servidores. Ora, o número de pessoas que o Inpe precisa não pode ser fixado por Leis ou Decretos, pois depende das missões que realizamos. O que o Brasil quer do Inpe é que sejamos capazes de cumprir missões: construir satélites, produzir pesquisa de qualidade, fazer boa previsão do tempo, monitorar o meio-ambiente com eficácia. Para servir bem ao Brasil, temos de ter metas claras com prazos e recursos bem definidos.

Precisamos mudar a nossa visão. Na sociedade do conhecimento do século 21, não faz mais sentido dizer: “Precisamos de 500 novos servidores RJU para repor os 500 que se aposentaram. Esses novos servidores serão contratados para cumprir 35 anos de serviço público.” Esta postura não tem a menor chance de sucesso, pois esta lógica de contratar pessoas para a vida eterna é incompatível com os princípios de qualidade, eficiência e rapidez de resposta que o Inpe precisa ter. O que devemos dizer para o governo é: “Temos condição de realizar esta missão para o Brasil. Precisamos de X pesquisadores e engenheiros para executa-la no prazo de Y anos.” Este é um acordo justo. O governo saberá o que está contratando e o Inpe saberá o que tem de produzir. Afinal, a sociedade brasileira só deve financiar o Inpe enquanto cumprirmos missões que justifiquem o dispêndio de recursos públicos.

O governo federal já sabe qual é o caminho da eficiência. Os novos institutos no MCT (a Empresa Brasileira de Pesquisas Industriais – Embrapi e o Instituto Nacional de Pesquisas Oceanográficas e Hidroviárias – INPOH) serão organizações sociais (OS), hoje a melhor opção que dispomos para instituições de C&T. As OS cumprem missões definidas pelo governo por meio de contratos de gestão. Têm flexibilidade para contratar e demitir pessoal e seu sistema de licitações não segue a Lei 8666/93. Têm metas e objetivos definidos e mensuráveis, de cujo cumprimento depende a renovação dos contratos de gestão.

Nos EUA, o país de maior produção científica e tecnológica do mundo, há décadas o grosso das atividades de P&D é realizada por instituições públicas não estatais. O modelo brasileiro das OS corresponde ao modelo americano dos “Federally Funded Research and Development Centers (FFRDCs)”. Os FFRDCs são centros de P&D contratados pelo governo dos EUA, conforme as seguintes regras:

“A Federally Funded Research and Development Center (FFRDC) is an activity sponsored under a broad charter by a Government agency for the purpose of performing, analyzing, integrating, supporting, and managing basic or applied research and development, that receives 70 percent or more of its financial support from the Government.

1. A long-term relationship is contemplated;

2. Most or all of the facilities are owned or funded by the Government; and

3. The FFRDC has access to Government and supplier data, employees, and
facilities beyond that common in a normal contractual relationship.”

Lógica perversa

Os laboratórios nacionais de P&D (national labs) mais importantes dos EUA são
FFRDCs, incluindo: Argonne NL, Brookhaven NL, Fermi Lab, JPL, Los Alamos NL, NCAR, National Radio AstronomyObservatory, OakRidge NL e Sandia NL. O pragmatismo dos americanos é revelador. Esses laboratórios cumprem missões essenciais aos EUA, inclusive estudos secretos sobre armas nucleares, mas operam com a liberdade de ação necessária. Não éà toa que os EUA continuam à frente da Europa e dos BRICs na produção de C&T. A experiência americana nos indica que o modelo das OS (FFRDCs nos EUA) é compatível com institutos e laboratórios que cumprem missões de grande importância pública.

Nada de essencial impede o INPE e os demais institutos do MCTI de virarem OS, senão a nossa angústia pessoal de nos aferrarmos a um passado que nunca existiu. A condição do INPE e dos demais institutos como administração direta é fato relativamente recente e decorre da Constituição de 1988. Já fomos regidos pela CLT, quando tínhamos muito mais liberdade para contratar e demitir do que hoje. O que nos trouxe até aqui não foi o RJU, nem a AGU, nem a Lei 8666/93. Foi nossa capacidade de trabalhar e produzir boa Ciência e Tecnologia. É esta capacidade de produzir que nos está sendo subtraída pelo modelo de gestão que temos. A permanência dos institutos do MCTI na administração direta já há muito tempo deixou de ter benefícios para se converter num ônus insuportável.

Diz o provérbio inglês que quando se chega ao fundo do poço, o melhor a fazer é parar de cavar. Não dá mais. Temos de romper a espiral descente que vivemos. A cada novo dia dentro da lógica perversa da administração direta, os institutos do MCTI pioram um pouco mais. Temos de ousar conjuntamente e buscar as mudanças em lugar de temê-las. Em lugar de nos amarrar a um Titanic que afunda, precisamos de coragem para construir caravelas científicas ágeis. Mais que nunca, navegar é preciso.

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Gilberto Câmara é tecnologista sênior do Inpe, tendo sido diretor e coordenador de observação da terra. Recebeu o Pecora Award, da Nasa, por suas contribuições ao sensoriamento remoto