No sábado (14/6), na abertura da Copa das Confederações, em Brasília, a Polícia Militar caiu batendo sobre um grupo que protestava contra os custos da Copa. Uma boa parte eram estudantes universitários. Não houve negociação. A PM determinou que o grupo não poderia se aproximar do estádio, fechou um círculo sobre eles e, não satisfeita, lançou gás lacrimogêneo e atirou com balas de borracha. Por fim, deteve duas dúzias de jovens. Qual a acusação? Bem, pode se inventar algo como “tentativa de atrapalhar as festas dos ricos”. Ou, então, “tentativa de fazer algo que a polícia de Brasília não gosta, manifestar-se contra o poder instalado”. Talvez se apele para o velho e mofado bordão que protege os que abusam do poder: “Teje preso por desacato à autoridade”.
A bem da verdade, o crime de “desacato à autoridade”, estabelecido pelo Código Penal, costuma aparecer quando o poder público abusa ou quando surge uma reivindicação cidadã. Por exemplo, tudo que é repartição pública que presta um serviço de quinta categoria tem lá a sua placa ameaçando os possíveis críticos. Todo hospital público que atua mal e porcamente (e são muitos no Brasil) expõe cartazes com esta ameaça. Os jornalistas que atuam na linha de frente das investigações, os que questionam o poder, vez ou outra são detidos e indiciados por “desacato à autoridade” – é a panacéia para o poder se impor diante de quem ousa lhe questionar.
É claro que, conforme a Constituição brasileira, constitucionalmente todos têm direito a se reunir e se manifestar. Nenhum poder pode impedir isso. A não ser, claro, o poder da bala. E foi o que se usou. Questionar esse método é também desacato…
Força vs. inteligência
A PM de Brasília, a bem mais paga do país e, ao que parece, tão despreparada quanto as outras, tem um histórico de intolerância com os jovens. Há cerca de três anos um grupo tentou impedir a transformação de uma pequena área indígena num bairro de elite, o Noroeste. A PM foi para cima e saiu batendo nos garotos. A repercussão na imprensa foi pequena porque uma parte dessa imprensa já tinha negócios com as empreiteiras.
Em 2010, quando o governador do Distrito Federal José Roberto Arruda estava prestes a ir para cadeia por conta de tramoias, essa mesma PM foi para cima dos manifestantes que pediam sua saída – a cavalaria lançou-se sobre a garotada deitada no chão. Se um cavalo pisoteia a coluna de uma pessoa ela podia morrer ou ficar paralítica para o resto da vida. As imagens do caos provocado pela polícia mostram que isxo poderia ter acontecido.
Há também o caso do “Galinho de Brasília”, um pequeno bloco de frevo inspirado no “Galo da Madrugada” do Recife, que ao encerrar seu desfile no carnaval de 2008 teve os foliões atacados por um arrastão policial. Na rua transitavam crianças, idosos, mulheres, mas como veio a ordem de limpar a via deu-se o caos: gás, tiros de festim, balas de borracha, correrias, espancamentos…
Na abertura da Copa das Confederações, como aconteceu em outras praças do país, mais uma vez houve enfrentamento da polícia com os manifestantes. Talvez em virtude do seu treinamento militar, a polícia não se pergunta sobre a real dimensão do problema – ao seu modo, ela foge do problema. Porque em Brasília certamente esses manifestantes que eram contra, principalmente, os gastos na Copa, não poderiam causar danos materiais ou às demais pessoas. Era, fundamentalmente, um ato simbólico. Eram senhoras, senhores, jovens estudantes. Ninguém estava armado com fuzis, metralhadoras, bazucas… Isto é, não era uma guerra.
Poderia ter alguém planejando um ato violento? Sim, é possível. Mas para isso existe os serviços de Inteligência. Basta alguém se infiltrar para identificar os possíveis “baderneiros”. Por que a polícia não usou a inteligência e apelou para força bruta é algo que merece ser avaliado pela imprensa. Aliás, por que a polícia de Brasília adotou como prática apelar para força bruta ao invés da inteligência?
Outra pauta
O ato simbólico da garotada era legal, justo e cidadão. Ao invés de bater em quem não tinha como se defender, a polícia deveria defender e apoiar esse grupo. O que o governador Agnelo Queiroz está fazendo, além de enterrar o Partido dos Trabalhadores, ainda não foi dito pela imprensa local que tem lá suas razões (financeiras?) para se associar a esse governo. Os manifestantes questionavam, por exemplo, o fato de o Governo do Distrito Federal (GDF) investir tanto na Copa, mas oferecer um dos piores serviços médicos do país. Questionavam o transporte público na capital do país: os ônibus são sujos, lotados, não cumprem horários e costumam quebrar. Se parte da imprensa local opta por defender o governador, muitos brasilienses sabem disso. E uns poucos foram à rua protestar. O problema é que esse protesto poderia atrapalhar a festa do governador Agnelo, da presidente Dilma Roussef, e do chefe deles todos, Joseph Blatter, presidente da Fifa. E isso eles não iriam tolerar. Por isso mandaram a polícia sobre a garotada.
Conforme a rádio BandNews, na manhã do dia 14/6 os dois grupos – polícia e manifestantes – haviam se desentendido. Diz o repórter que, quando tudo parecia em paz, um dos manifestantes ofereceu uma flor ao policial. O militar não tolerou aquilo que, para ele, era uma provocação. Na verdade, receber uma flor não pode ser entendido como provocação. A princípio é um gesto de paz em qualquer lugar do mundo. E mesmo que, no extremo, fosse um deboche, um policial não deveria se descontrolar. A tropa ainda precisa ser treinada naquilo que é fundamental para um agrupamento militar: tolerar e saber como agir, se provocada. O policial, no caso, mostrou que não sabe como reagir nesses momentos de tensão. Na verdade, é uma péssima lição para a sociedade – se o policial não sabe como agir em momentos de tensão, que dirá o cidadão comum? Se o relato do repórter exprime a realidade, certamente a PM não está preparada para lidar com manifestações contrárias ao poder.
Mas, e quanto às críticas dos manifestantes. Têm fundamento? E se tem fundamento o que a imprensa apurou e denunciou?
Conforme o noticiado, o Ministério dos Esportes gastou R$ 26 milhões somente na preparação dos voluntários da Copa das Confederações da Fifa. Voluntárias são aquelas pessoas que toparam trabalhar de graça para a Fifa, a empresa bilionária que está promovendo o evento no Brasil. Mas isso é outra história. Outra pauta…
O Brasil, com dinheiro público, construiu uma dezena de estádios de futebol para os eventos da Fifa. Somente no Estádio Nacional de Brasília, o país investiu R$ 1,2 bilhão, segundo as fontes oficiais, ou R$ 1,6 bilhão segundo fontes reais. E não está pronto ainda. Consta que ainda é preciso fazer um túnel entre o Centro de Convenções – onde será instalado um comitê de imprensa – e o estádio, para que os jornalistas não se exponham ao sol e ao vento na caminhada de 100 metros entre os dois espaços. Também falta construir o estacionamento, fazer o paisagismo… O que vai custar mais R$ 350 milhões, ou algo assim. Aposte no “algo assim”, porque esse estádio deveria custar R$ 750 milhões, mas recebeu aditivos financeiros e chegou ao bilhão anunciado. É o estádio mais caro do Brasil.
Talvez depois de alguns meses ele tenha o mesmo destino inglório do Maracanã. Construído na década de 1950 para abrigar a Copa do Mundo, graças ao esforço do pernambucano Mário Filho, irmão de Nelson Rodrigues, o Maracanã não é mais nosso. Depois de ter recebido algo em torno de R$ 1 bilhão em recursos públicos, ele foi cedido ao nosso grande ícone capitalista, o nosso Tio Patinhas, Eike Batista. Mas isso é outra história. Ou outra pauta…
Vaias certeiras
No Estádio Nacional Mané Garrincha os gastos não se encerram. A cada evento mais recursos públicos são injetados. Por exemplo, para o jogo do Brasil contra o Japão, havia um contingente de, pelo menos, 2.500 policiais militares. Qual o custo disso? Considerando que se trata da força policial mais cara do Brasil, com salário médio de R$ 4mil…
Há outras contas. Considere-se que trabalhou a Polícia Militar, o Detran, os Bombeiros, a Polícia Federal e até o Exército. Adicionem-se os gastos com combustíveis das viaturas, deslocamentos, e até a manutenção de um ou dois helicópteros sobrevoando – por mais de 4 horas – as imediações do estádio. Esta conta (gastos públicos) ainda não foi feita. E não se encerra aí. Como a Fifa receia atos terroristas, mandou o governo federal adotar medidas para que isso não aconteça. Obediente, o Brasil teve que comprar uma série de artefatos ultrassofisticados de controle de segurança e, consta, até dispositivos antimísseis. Esses equipamentos, dentro do mercado da morte, digo, mercado de armas, mede-se em milhões e bilhões de dólares. Considere-se também que, há meses, muitos funcionários do governo federal e distrital dedicaram-se exclusivamente à Copa.
Sim, são duas Copas: há essa agora, a “das Confederações” e a outra, a “do Mundo”. A duas são da Fifa. Isto é, a bilheteria é dela. O Brasil entra com os estádios, infraestrutura, pessoal… enfim, com tudo. O Estado dá o circo e eles faturam com o espetáculo.
O que o país ganha com isso? Os grandes negociantes vão faturar bastante; os pequenos ficam com as sobras do banquete. A população ganha o espetáculo do circo, o efêmero, um carnaval sem marchinha. Selecionado. Quem quiser entrar no circo – construído com recursos públicos – vai ter que pagar caro pelo abadá, muito caro. Pobre que vá engolir pela TV o discurso míope e moralista de Galvão Bueno, narrando um jogo que não é aquele que passa à sua frente.
Se esses são fatos, por que a maioria da imprensa é tão tolerante com a farta distribuição de dinheiro público para um evento de caráter privado? Por que tolerou compras sem licitação, quebrando uma regra de transparência (constitucional) na administração pública? Por que aceita que o Estado se humilhe às condições impostas pela Fifa? A imprensa não deveria ser tolerante com esse tipo de coisa. E a polícia deveria ser tolerante de quem se organiza e questiona tudo isso. Os manifestantes estavam do lado da lei, da transparência, na defesa do bem público. A polícia deveria – sempre – estar ao lado de quem faz isso.
Quanto à seleção brasileira. Por conta da TV Globo, dos negócios e dos negociantes, dessa política e de alguns empresários, o futebol enquanto paixão está em plena decadência. O povo não é bobo. Daí as vaias para Joseph Blatter, Dilma Roussef e a polícia de Brasília. O que fazem os manifestantes em todo país é alertar sobre isso.
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Dioclécio Luz é jornalista, mestre em comunicação pela UnB, autor de A arte de pensar e fazer rádios comunitárias