Buscando inspiração no filósofo francês André Comte-Sponville, pode-se entender que a política é o debate sem violência, é o conflito sem armas. Sem política não há salvação para os problemas humanos. Assim, pode-se fazer uma análise lato sensu dos eventos nas ruas das grandes cidades brasileiras (fenômeno social empolgante que nos últimos tempos deu um choque de realidade aos governos e aos políticos brasileiros) e como estes são representados nos meios de comunicação. Do ponto de vista do discurso, entendendo este como efeito de sentido entre interlocutores, tem-se um material rico para posteriores análises e aprofundamentos qualitativos, objetivamente indo além do calor das bombas de gás e da verborragia dos canais conservadores com sua concentração cruzada e consenso cínico.
Essa reflexão é construída a partir de três cenários possíveis para compreender os discursos, dentro de uma formação ideológica, ou seja, um debate, que se apresenta de várias maneiras: o Brasil não é mais o país do futuro e não há satisfação com o status quo. A partir disso, pode-se ter três formações discursivas ou posicionamentos ideológicos possíveis: a) o discurso de vanguarda, de tradição esquerdista, histórico e ligado à causa popular dos movimentos sociais; b) o discurso de intolerância e violência; c) o discurso conservador e reacionário.
O discurso de vanguarda
Esse discurso, presente na maioria das passeatas desde as “Diretas Já”, tem pauta organizada, gestada em reuniões assumidamente políticas em debates públicos, em sindicatos, em partidos políticos, tem viés progressista e principalmente origem em movimento sociais, com agendas de luta pelos direitos populares, periferia, minorias e excluídos do processo do capital. É o que parece ser o discurso principal do movimento passe livre. Tem fundamento no tema cidadania, é nutrido pelos Direitos Humanos e inclui questões como Reforma Agrária, Gênero, Direito das Crianças e Adolescentes, Direito a Comunicação, Seguridade Social, Educação Pública de Qualidade, Saúde Pública de Qualidade, Lazer Público e Qualidade e muitos outros temas rejeitados pela mídia conservadora e cínica. Essa pauta versa questões concretas e simples do dia-a-dia e é debatida a todo momento nos sindicatos e movimentos sociais, porém rejeitada e criminalizada após as Conferências de Direitos Humanos, as Conferências de Cultura e as Conferências de Comunicação. Mas parece ter sido a pauta intelectual motriz nas passeatas e foi tratada com desdém e com violência pelos governantes, pela polícia e pelos meios de comunicação.
Esse discurso, com inspiração em tradições filosóficas, sociais e econômicas, é a mais perigoso para o status quo por isso é rejeitado, é ridicularizado e ao mesmo tempo é tratado como oportunista ao ser ligada a partidos de esquerda e direitos sociais dos pobres e temas marginalizados como Bolsa Família, cotas raciais e cidadania plena. É um discurso revolucionário, chamado de “ideológico” pelos canais de comunicação em seu consenso reacionário e conservador e por isso mesmo deve ser combatido pelos intelectuais, comunicadores e políticos da direita de forma implacável. Por ser declaradamente político e exigir transformações sociais profundas, esse discurso ameaça as estruturas ao pedir reforma agrária, regulamentação e direito comunicacional, bem como reforma política e reforma judiciária.
Aos poucos, o discurso de vanguarda foi diluído nos esquemas acéfalos que as passeatas assumiram, tendo como exemplo disso a segregação dos militantes políticos e dos movimentos sociais e sua hostilização por parte do outros grupos presentes no protesto. Na prática, houve um esvaziamento da pauta progressista como um todo. O discurso progressista de esquerda foi retratado nos meios de comunicação como usurpador, além do discurso conservador e reacionário da classe média e elites sudestinas com suas instrumentalizações nas redes sociais. Se não há liderança das camadas sociais devidamente segura de seu discurso, há a presença de outros agentes assumindo esse papel com suas formações discursivas e suas pautas e ações de violência contra o patrimônio público e privado.
Discurso de intolerância
O discurso, nesse cenário, pertence à formação cujo tema é o silêncio em sua forma, mas ele retrata um posicionamento ideológico que se desdobra em ações concretas, tanto em elementos de violência contra o patrimônio público, depredações, destruições e agressões, como também o revide dos agentes de Estado, polícia e guardas armados com uso de cassetetes, bombas de feito moral e balas de borracha.
O tema desse discurso é o caos, a desordem e que faz parte das mudanças, dado que na violência armada não há mediação do debate, do consenso comunicacional ou mesmo da política, por isso as instituições são depredadas, os políticos e os partidos ridicularizados, pois eles simbolizam a palavra, a Política e a mediação simbólica. No silêncio do discurso, nesse caso, torna-se embate físico e repressão policial que no mais das vezes é agradável para os conservadores/reacionários que detestam o discurso dos movimentos sociais e os igualam aos depredadores e baderneiros. Por isso, observa-se em falas e textos da mídia o desejo do “quanto pior melhor”, discurso conservador para as propagandas político-partidárias nas próximas eleições.
Por sua vez, o discurso da intolerância expressa-se na forma de enfrentamento das tropas de choque e das PMs, treinadas na ditadura militar para reprimir qualquer tipo de manifestação ditas “não ordeiras” e que estão prontas para conter as mudanças estruturais. No discurso da violência, está presente a repressão legal e estatal que é defendida pelos governantes, pelos políticos e pelos meios de comunicação, pois é essa mesma força repressiva que repreende estudantes, professores, sindicalistas, torcedores, sem-teto, sem-terra, índios e outros que queiram mudar o país.
Conservador e reacionário
Esse discurso, pautado pelos meios de comunicação, assume-se como um camaleão, pois se traveste de progressista e de vanguarda, mas é tematizado fundamentalmente em ideologias como a neoliberal, a conservadora/reacionária: “Anti Pec 37”, “Mensalão”, “apartidarismo”, “inflação do tomate”, “diminuição da maioridade penal”, “cura gay” e “liberdade de imprensa”. São temas caros à elite conservadora, à classe média e seu porta-voz, os meios de comunicação em sua alta concentração e seu consenso cínico.
Neste cenário, o discurso da esquerda é chamado de “ideológico” e o movimento das passeatas se assemelha ao “Cansei”, típico da insatisfação das elites, artistas e meios de comunicação sudestinos que veem com suspeitas os avanços sociais do governo Lula, dizendo-se apartidários, mas ideologicamente instrumentalizados para os privilégios que a política conveniente pode propor no lucro, nos negócios e na ordem garantida pelas forças de repressão: agronegócio, concentração dos meios de comunicação e das verbas publicitárias, fisiologismo político e conservadorismo de instituições como Congresso Nacional, Judiciário e Ministério Público em temas de justiça social. Do ponto de vista moral, esse discurso conservador/reacionário pode ser sintetizado na frase: “Aos amigos tudo, aos inimigos a lei”.
Esse discurso tem grandes articuladores em todos os níveis e que são capazes de usar os meios mais sofisticados para divulgar essa posição ideológica, inclusive nas redes sociais. Funcionando em espiral, apresentando-se como verdade absoluta, esse discurso rejeita as mudanças sociais, os direitos humanos e mais do que tudo querem a manutenção dos privilégios políticos, econômicos e concentração cultural e dos meios de comunicação no Brasil. É um engodo discursivo, uma forma de tentar aproveitar politicamente do contexto para assim articular ações no poder como fim dos avanços sociais e volta da agenda neoliberal em nível estatal, por meio de uma falsa antipolítica como se isso fosse possível.
Projeto Brasil
Nessa formação discursiva, tem-se a ideologia do ódio e da intolerância para com figuras políticas como Lula, para com regiões como norte e nordeste, para com militantes políticos e de movimento sociais de esquerda (sindicalistas, sem-terra, homossexuais, negros e índio). Esse discurso conservador é nutrido e também nutre, numa circularidade, a injustiça social, a agressão aos direitos humanos, a intolerância e a discriminação. As conquistas sociais são rejeitadas como desnecessárias em nome de um elitismo dos serviços privados e da extinção dos serviços públicos. Esse discurso inspira-se no neoliberalismo vivo nas camadas mais profundas do seu esgoto ideológico: o Estado deve ser mínimo para o povo e máximo para a elite. Assim, observa-se que o discurso conservador é contra a busca das melhorias e transformações profundas na sociedade brasileira, mas apresenta-se latente nas passeatas e se expressa em cartazes, sites, redes sociais e vociferada por jovens em suas diversas matizes e instrumentalizações.
Por fim. No calor do movimento, observa-se o desejo dos jovens da periferia que querem mudanças estruturais: emprego, educação, saúde, segurança, transporte e transformações profundas nos governos, no Congresso e legislativos, no judiciário e tribunais. Mudanças e regulamentação dos meios de comunicação e sua democratização, reforma das instituições econômicas/financeiras e de produção, reforma agrária, cidades humanizadas e terra para quem precisa, lazer e oportunidades de ser cidadão plenos de seus direitos sociais e humanos. O projeto Brasil deixa de ser rascunho e passa ser ato. Agora, como isso acontece? Pela violência ou pela política? Fora da política há salvação?
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Moisés dos Santos Viana é jornalista e professor universitário