Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

MPL, catarse coletiva e o jogo midiático

As manifestações públicas, que começaram em 6 de junho com 150 estudantes do Movimento Passe Livre (MPL), na frente da Prefeitura de São Paulo, parecem caminhar para um fechamento de ciclo nos próximos dias. Entre aquele momento e a quinta-feira (20/6), centenas de milhares de pessoas foram às ruas numa polifonia de vozes e propósitos, sem lideranças reconhecidas entre os próprios manifestantes – à exceção do MPL, uma mensagem neoconservadora, hegemonizada pelos “sem-partido” e vozes de movimentos como o “Cansei” e “Acorda Brasil”. A parte da classe média defensora dessas ideias acordou.

O segundo momento vai testar o legado histórico dessa megamobilização. Depois de 21 anos dos grandes atos do “Fora Collor”, o país assiste a um protesto de novo tipo, que não guarda semelhanças com outros movimentos cujas bandeiras e atores são facilmente identificáveis: “Passeata dos 100 mil” (oposição à ditadura militar), “Diretas Já” (em favor da emenda Dante de Oliveira, que propunha eleições diretas para presidente da República), “Fora Collor” (impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello), este último liderado por entidades como OAB, CNBB e partidos políticos progressistas.

Nas ruas, o Movimento Passe Livre emerge, depois de quase 10 anos lutando por qualidade e gratuidade do transporte coletivo, como um grande ator. A revogação do aumento da tarifa, a partir de Rio e São Paulo (e mais algumas dezenas de cidades), vale muitíssimo mais que 20 centavos. O MPL pode se transformar num protagonista fundamental do debate público sobre os negócios obscuros que envolvem os poderes públicos locais e as empresas prestadoras desse serviço essencial à imensa maioria da população. Transparência sobre os dados (planilha de custos, lucros, subsídios públicos etc.) e gestão que prime pela qualidade do serviço podem ser um bom começo.

Certamente, no horizonte do movimento, a utopia da gratuidade permanecerá a inspirar os próximos passos. Nesse sentido, o MPL ocupou o espaço de debate público, tanto no Conselho da Cidade (em São Paulo) quanto em programas de entrevistas como o Roda Viva (TV Cultura), com os excelentes Nina Capello e Lucas Monteiro de Oliveira (ver aqui). O movimento, nascido do Fórum Social Mundial, em 2004, se projetara nacionalmente a partir de 2005, com grandes mobilizações em Florianópolis (SC), e ganhou enfim a cena nacional.

Imprensa atônita

O momento atual é privilegiado para se refletir também sobre dois outros elementos: a caracterização das manifestações e o papel que jogou a mídia tradicional, historicamente ligada às aventuras golpistas de uma elite que só agora, 513 anos depois da “inauguração” do Brasil, começa a respeitar nossa incipiente e frágil democracia. É sempre bom lembrar que Dilma Vana Rousseff é a sexta presidente eleita, num período sem golpes, quarteladas nem retrocessos institucionais, desde 1989 – depois de 25 anos de ditadura e “transição transada”. Fiz um exercício linear com meus alunos, há três anos, na UnB: o país soma pouco mais de 40 anos de Estado democrático, em cinco séculos. Esse patrimônio atual não pode ser colocado em risco, sob nenhum argumento ou hipótese.

É inegável, contudo, que as manifestações tragam um saldo ambíguo: de positivo, tiram da zona de conforto tradicionais atores políticos, sem exceção (partidos, entidades sindicais e populares, igrejas progressistas, ONGs, movimentos sociais autônomos como o MST, entidades da sociedade civil). Por outro lado, é grave e preocupante o tom despolitizado e conservador que encontrou um lugar nas ruas. Estou de pleno acordo com a análise do jornalista Marco Aurélio Weissheimer, na Carta Maior:

“Uma multidão cuja direção (rumo) passou a ser atacar instituições públicas, sem representantes, sequestrada por grupos de extrema-direita, que rejeita partidos políticos e hostiliza manifestantes de esquerda, não só não me representa como passa a ser algo a ser combatido politicamente” (íntegra aqui).

Ódio de classe, intolerância e truculência marcaram as manifestações gigantes do dia 20 de junho, numa imensa catarse coletiva pós-moderna, mobilizada a partir das redes sociais. Não por acaso, jovens do PSTU, PSOL, PT, MST e até do MPL, o protagonista com mais legitimidade, apanharam nas ruas das principais capitais do país, simplesmente porque estavam vestindo cores e/ou portando suas bandeiras vermelhas. Os dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nos dizem que mais de 15 milhões de brasileiros (7,9% da população) são filiados aos 29 partidos que atuam no país. Se esses cidadãos resolvessem aparecer nas ruas talvez recebessem o mesmo tratamento dos “sem-partido” e “apartidários” em São Paulo, representados pelos grupos neonazistas Carecas do ABC e Carecas do Brasil, que agrediram covardemente manifestantes de esquerda.

Um fato ainda me inquieta: o ponto de virada entre as primeiras passeatas e as megamanifestações foi justamente a legitimidade e o apoio, inequívocos, que o movimento ganhou em função da grotesca repressão policial, em São Paulo e no Rio de Janeiro, nos atos de 13 de junho. Depois, a PM saiu de cena e “pitboys” e outros “manifestantes” sem-partido vandalizaram prédios históricos, e sob seu manto abrigaram saqueadores e vândalos de todas as classes sociais, destacando-se os de classe média alta que logo mobilizaram seus advogados para lhes safar da cadeia.

Convém refletir ainda sobre o papel da mídia. Historicamente jogando ao lado dos setores conservadores da sociedade, os grupos empresariais de comunicação do país, aliados de primeira hora dos golpistas, em 1964, zanzaram sem rumo na primeira semana do movimento (de 6 a 13 de junho). Observemos três momentos da Folha de S.Paulo.

Autocrítica necessária

O título do editorial de 13/06 chamava a tropa de choque à repressão: “Retomar a Paulista”. Os manifestantes, para a Folha, seriam “jovens predispostos à violência por uma ideologia pseudorrevolucionária, que buscam tirar proveito da compreensível irritação geral com o preço pago para viajar em ônibus e trens superlotados”. Qualificava ainda os “protestos abusivos, que prejudicam milhões para chamar a atenção do público”. E arrematava em tom ameaçador: “Pior que isso, só o declarado objetivo central do grupelho: transporte público de graça”.

Após a violenta repressão, o jornal mudou de lado e passou a culpar a PM. No editorial de 15/06, lê-se o título: “Agentes do caos”. E a Folha acusou: “A Polícia Militar do Estado de São Paulo protagonizou, na noite de anteontem (13/06), um espetáculo de despreparo, truculência e falta de controle ainda mais grave que o vandalismo e a violência dos manifestantes, que tinha por missão coibir. Cabe à PM impor a ordem, e não contribuir para a desordem”. A fúria ensandecida da PM atingiu também sete jornalistas da Folha, incluindo a repórter Giuliana Vallone (TV Folha), que levou 15 pontos no rosto, alvo das balas de borracha da PM paulista. O jornal concluía acusando: “No quarto protesto, a responsável maior pela violência passou a ser a própria PM. Pessoas sem envolvimento no confronto foram vítimas da brutalidade policial”.

Por último, no editorial de 20/06, o diário paulista comemora: “Vitória das ruas”. Nas primeiras linhas, a Folha escreveu: “A revogação do aumento das tarifas de transportes em São Paulo e no Rio é uma vitória indiscutível do Movimento Passe Livre”. Para quem começou sendo chamado de “pseudorrevolucionário” e “grupelho”, o MPL ganhava novo status também nas páginas da Folha. Ademais, o posicionamento político antidemocrático do jornal iria aparecer, após as manifestações de 20 de junho, através de uma “sondagem de encomenda” do Datafolha, ouvindo 551 manifestantes da Avenida Paulista: Joaquim Barbosa (presidente do Supremo Tribunal Federal) era indicado como candidato preferido de 30% dos respondentes à presidência da República, seguido de Marina Silva (22%) e Dilma Rousseff (10%). Na edição de final de semana (23/06), o jornal escalou um de seus principais colunistas (Elio Gaspari) para testar a hipótese Barbosa.

A poeira das ruas deve começar a baixar, descortinando o cenário político e as consequências históricas. É hora de separar o joio reacionário (daqueles que estavam “dormindo de touca”) do trigo revolucionário da juventude do MPL – que há quase uma década luta pela causa do transporte público de qualidade e gratuito. Se os atores tradicionais da cena política de fato saírem de suas respectivas “zonas de conforto” e se reposicionarem, com a necessária autocrítica frente à energia transformadora emanada pelo MPL e outros movimentos presentes, as mudanças mais profundas nas políticas públicas (saúde, educação, segurança pública, reforma política, infraestrutura, entre outras demandas sociais) podem ser o melhor legado à jovem democracia brasileira.

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Samuel Lima é docente da FAC/UnB, professor visitante do curso de jornalismo da UFSC e pesquisador do objETHOS