Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Nunca faltou motivo

Enquanto se realizavam em locais próximos as manifestações do passe livre de segunda-feira (17/6), era lançado na Alameda Lorena, em São Paulo, o livro de Sandro Vaia Armênio Guedes: sereno guerreiro da liberdade, da Editora Barcarolla. (Veja aqui vídeos do lançamento na Livraria da Vila – Jornal da Noite, Band – e no Programa do Jô.)

Guedes e Vaia mencionam a organização em 1942, durante a ditadura do Estado Novo, de uma passeata no Largo da Sé pela entrada do Brasil na guerra contra o nazismo alemão e o fascismo italiano. Armênio costuma narrar esse episódio, em que foi ajudado por estudantes de direito do Largo de São Francisco.

Houve passeatas mais importantes, por exemplo na Bahia, espontâneas, imensas, causadas pela visão, nas praias, dos corpos de centenas de mortos no afundamento de navios mercantes brasileiros por submarinos alemães e italianos. No Rio de Janeiro, os manifestantes chegaram ao Palácio Guanabara, então sede da Presidência da República (hoje do governo estadual), e fizeram Getúlio Vargas aparecer na sacada. A ala pró-Aliados do governo prevaleceu e o Brasil entrou na guerra.

Memória de povo na rua

Muito poucos participantes do Movimento do Passe Livre conhecem o papel das passeatas em 1942. Mas elas estavam na memória dos manifestantes de agosto de 1954 (suicídio de Vargas), estavam na memória dos manifestantes de 1964 (a favor e, mais numerosos, contra o presidente João Goulart), e assim sucessivamente: 1968 (passeata dos Cem Mil, no Rio, pelo restabelecimento das liberdades democráticas), 1976 (cortejos fúnebres de Juscelino Kubitschek até o Aeroporto Santos Dumont, no Rio, e de João Goulart, em São Borja, RS), 1977 (tentativa de refundação da UNE, na PUC-SP, reprimida violentamente sob o comando do coronel Erasmo Dias), 1984 (Diretas Já), 1992 (Fora Collor), entre tantas outras.

O drama da condução existe praticamente desde o início do Brasil nação, desde que houve escravos alforriados e outros pobres a transportar. Em 1976, quase cento e dez anos depois de rolar nos trilhos o primeiro trem, João das Neves encenou sua peça O último trem, ambientada, descreve o autor,

“no universo dos subúrbios cariocas, onde vivem mais de 65% da população útil do Rio de Janeiro. É o universo dos que precisam se utilizar diariamente dos trens suburbanos. Neles perdem 1/3 dos seus dias, 1/3 das suas vidas. É o universo dos 'emparedados' pelos vagões da Central ou Leopoldina ou qualquer via férrea por este Brasil afora. É um Universo trágico, regido pelos deuses cegos de um Olimpo sem grandeza, num mundo que não produz mais heróis porque o heroísmo está encravado na luta cotidiana pela sobrevivência de toda a população de uma cidade, de um país, de um mundo” (apud texto de Kátia Rodrigues Paranhos).

Brasília ou metrôs?

Em conversa recente, Armênio Guedes comentou que, quando JK apresentou o projeto de erguimento de Brasília no meio do desértico cerrado goiano, chegou-se a discutir se não seria melhor aplicar o dinheiro na construção (já então tardia) dos metrôs do Rio e de São Paulo, e no saneamento básico dessas cidades, que tinham na época mais ou menos a mesma população, cerca de 2,5 milhões de habitantes.

A criação de Brasília não pode ser avaliada em chave maniqueísta. Costuma-se apontar entre suas virtudes a integração do Centro-Oeste a uma nação construída do litoral para o interior (salvo no Piauí, caso em que o oposto ocorreu), e com isso a abertura de uma ligação por terra com o Norte. Entre suas consequências negativas, o isolamento do poder supremo do país, ao qual muitos atribuem a duração da ditadura militar.

Ainda é muito cedo para tirar conclusões que ultrapassem constatar as contradições.

Desenvolvimento = carro

Brasília ficou famosa também por ter sido concebida para o automóvel. Não por uma tara individualista de JK e dos planejadores de seu governo, mas dentro de uma concepção que igualava desenvolvimento a indústria automobilística. Era uma ilusão cabível abaixo do equador. O desenvolvimentismo de JK criou no ABC a indústria automobilística, que, vinte anos depois, foi o berço de um sindicalista singularmente dotado de capacidade de liderança, Lula, quase trinta anos adiante eleito e reeleito presidente da República, e patrono da candidatura de sua sucessora, Dilma Rousseff.

O desenvolvimentismo fora herdado de Vargas, o homem que havia organizado o trabalho numa parte do Sudeste brasileiro em processo de se tornar, na quarta década do século 20, inexoravelmente urbana. Getúlio, diga-se de passagem, fora o primeiro a adotar (em 1952, durante seu segundo governo) restrições à importação de carros, incentivo pioneiro à produção local.

Fusca, o símbolo

A ampliação do mercado para automóveis foi simbolizada pelo Fusca. O brasileiro se tornou uma espécie de viciado em carro, que simbolizava a capacidade de cada indivíduo ou família de se diferenciar da massa anônima condenada ao transporte público. Era menos difícil batalhar o dinheiro do carro do que participar de alguma luta coletiva por avanços sociais.

Em certa medida, a idolatria pelo automóvel ainda está presente no imaginário coletivo e, do lado da demanda, permitiu aos governos Lula e Dilma zelar mediante reduções de tributos pela manutenção da produção e das vendas de automóveis. Uma hipotética degringolada da indústria automobilística seria um golpe terrível para a economia do país: em 2011, representava 18,2% do PIB industrial.

Pensadas para poucos

Mas em nenhum momento os proponentes e executantes do desenvolvimentismo conceberam meios de preparar as cidades para o dia em que o automóvel ficasse ao alcance de camadas mais amplas. Hoje, com injeções de crédito fácil, o fenômeno, conhecido desde a primeira metade do século passado em países desenvolvidos, parece caminhar, em algumas cidades do país, para algum tipo de colapso em doses cotidianas.

O automóvel não foi privilegiado nas cidades brasileiras “em detrimento” do transporte público de massa. Nunca se quis ter um transporte de massa de qualidade. Os carros rolaram sobre o corpo esquálido dos trens de subúrbio, dos bondes, dos ônibus, dos lotações. Fazia sentido, para os governantes e os grupos socioeconômicos com poder para determinar políticas públicas: não se tratava de incorporar os migrantes à cidade.

Praia, não; piscinão

No Rio de Janeiro, nem se aceitava, no fim do século 20, que filhos de migrantes e descendentes de escravos fossem à praia dos brancos. Quando Brizola, governador do Rio, aceitou uma proposta de Jaime Lerner para autorizar a passagem de ônibus da zona norte e do subúrbio pelo Túnel Rebouças, em 1983, os ipanemenses reagiram com indignação ao desembarque daquele pessoal “diferenciado”, como se diria décadas depois no bairro paulistano de Higienópolis, para questionar a localização de uma estação do metrô. Em 2001, o então governador Anthony Garotinho confirmou a preferência da elite pela imobilidade dos suburbanos ao inaugurar o Piscinão de Ramos.

As áreas metropolitanas se tornaram bombas de sucção de gente para as tarefas mais duras e mal remuneradas. Os migrantes ficaram.

Em favelas – plantadas em morros, margens da malha fluvial que permaneceu emersa e terrenos invadidos. Seus barracos foram denominados pelo IBGE “habitações subnormais”. Hoje não se fala mais em erradicar favelas, aliás comunidades, mas em “urbanizá-las”. A elite e a classe média topam qualquer solução, desde que não se trate de incluir favelados na cidade. O estigma tem que continuar.

E ficaram também literalmente fora da cidade, ligados a ela por linhas de trem criadas e mantidas para transportar carga.

Trens e bondes

O território da cidade grande brasileira há muito fora reservado para os de dentro. No precioso Evolução Urbana do Rio de Janeiro (1987), Maurício de A. Abreu (1948-2011) explica que os bondes cariocas (puxados por burros) começaram a substituir as carruagens em 1868, penetrando “em áreas que já vinham sendo urbanizadas ou retalhadas em chácaras desde a primeira metade do século”. O metrô foi oferecido ao Rio e a São Paulo em 1912, quando ingleses o construíram em Buenos Aires. “Não precisa, o bonde resolve”. Algumas décadas depois, Inês estava morta.

O trem, inaugurado em 1858, quando dom Pedro II era um rapaz de 23 anos, ligou o Centro da capital do império à localidade de Queimados, quase um século depois distrito de Nova Iguaçu e hoje município. O urbanista Carlos Nélson dos Santos (1943-1989), citado por Abreu, escreveu: “…o bonde fez a zona sul [carioca], porque as razões de ocupação seletiva da área já eram 'realidade'. (…) Já o trem veio responder a uma necessidade de localização de pessoas da baixa renda e de atividades menos nobres (indústria, por exemplo)”.

Trens e bondes eram operados por empresas privadas. Precisavam dar lucro a seus acionistas. Eram quase todas estrangeiras. Nem passava pela cabeça de seus administradores instituir algum tipo de “tarifa social”.

Quebra-quebras

Getúlio foi eleito em 1950 com um discurso nacionalista. Entre seus alvos, empresas de bondes cuja lucratividade caíra muito e não investiam em modernização do serviço. As empresas ferroviárias foram nacionalizadas. Os governos não investiram para melhorar os trens. Quando a inflação entrou em trajetória ascendente, os preços das passagens foram congelados. O trem passou a ser barato. E a oferecer um serviço péssimo, cada vez pior.

Em junho e julho de 1975 houve no Rio de Janeiro uma sucessão de quebra-quebras de grandes proporções. O governo (Geisel) atribuiu as ações a “agitadores”, mas sabia que a questão era outra. A única coisa que a Rede Ferroviária Federal pôde dizer foi: peguem ônibus. Enquanto isso, o Exército colocava paraquedistas nas estações próximas à Vila Militar. Nada disso era novidade.

Tradição infame

O ônibus do Grande Rio é, portanto, herdeiro de duas tradições: a do bonde, inicialmente utilizado pelos habitantes dos bairros mais favorecidos, depois mais “proletarizado”, na medida em que a cidade “bem” fugia dos pobres e ia para bairros onde não havia trilhos, e a tradição do trem.

Sempre foi um transporte muito ruim, mais ou menos assassino dependendo da cidade, em muitos casos dominado por máfias, e sempre caro para o passageiro que tem dinheiro contado.

O caso do Rio é apenas um dos mais gritantes. São Paulo não tem uma trajetória mais brilhante. Não por acaso Caetano Veloso falou “do povo oprimido nas filas, vilas, favelas”. A extensão do problema pode ser avaliada, neste momento, pelo número de cidades em que houve movimentos na quarta-feira (19/6), dia em que governos acabaram desistindo em cascata de aumentos recentes das passagens, fato inédito na história brasileira.