Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Vitória do poder da notícia nos fluxos da rede

Ante a grandiosidade e os enigmas das manifestações de rua que em duas semanas mudaram a fisionomia do Brasil, a perplexidade foi largamente manifestada em textos e falas, por articulistas e cientistas de vários naipes ideológicos. E também pelos poucos políticos que se atreveram a comentar o tsunami humano que tanto os assustou.

Exemplo: o embasbacado Gilberto Carvalho, ministro da Secretaria Geral da Presidência, falando a jornalistas, confessou-se incapaz de atribuir significados às manifestações de rua que em uma semana mudaram a relação de forças nos jogos de poder da cena sociopolítica brasileira. Mais pela expressão facial do que pela fala, o ministro sintetizou o problema em seis palavras: “De fato, está difícil de entender”.

A presidente Dilma conseguiu ir além do seu fiel escudeiro. Numa das frases ditas, ela pôs uma pitada de lucidez na reflexão sobre os inusitados fatos. E abriu uma janela para análises mais profundas, ao dizer: ”Essas vozes (…) ultrapassam os mecanismos tradicionais, os partidos políticos e a própria mídia (…)”.

De tudo o que já se escreveu e disse por aí, na tentativa de entender e/ou explicar o significado das manifestações, a melhor síntese está no segundo parágrafo do bom texto assinado pelo escritor Antonio Prata, ontem (19 de junho), na Folha de S. Paulo:

“Sejamos francos, companheiros: ninguém tá entendendo nada. Nem a imprensa nem os políticos nem os manifestantes, muito menos este que vos escreve e vem, humilde ou pretensiosamente, expor sua perplexidade e ignorância.”

Também o experiente e sábio Clóvis Rossi se confessou atordoado, na abertura de um dos seus textos recentes (provavelmente o mais reproduzido) sobre as manifestações: 

“Aviso ao leitor: esta é apenas uma primeira aproximação ao que está acontecendo no Brasil. Sou obrigado a concordar com Ângela Randolpho Paiva, do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, que admitiu honestamente à Globo News: ‘Estamos atordoados’.”

Dois modos de olhar os fatos

Os esforços de entendimento das surpreendentes manifestações podem ser feitos por duas estratégias de observação. 

Uma, olhando as manifestações pelas circunstâncias e formas da sua materialidade. Portanto, como fatos localizados e delimitados no espaço físico urbano – e como tal, fatos de difícil compreensão, dado o gigantismo de multidões que parecem ter brotado do nada. E que ganham as ruas como movimento sem líderes nem história, sem palanques nem oradores. E sem rosto ideológico identificável. 

Quem olha as manifestações por essa lupa redutora fica tolhido pela perplexidade. E nem percebe que o enigma principal tem como núcleo vital a imaterialidade das redes sociais, ferramenta de mobilização que o relato jornalístico tratou apenas como detalhe curioso.

Por esta outra lupa, é possível olhar e começar a entender entender as manifestações como ocorrências de um mundo novo, no qual o poder transformador dos fatos não se dá nem se exerce nos lugares materiais onde ocorrem, mas no espaço imaterial dos fluxos em Rede. Esse é o espaço por onde circulam os discursos que dão alma aos fatos e que circulam em forma de Notícia, ganhando alcance universal instantâneo, com efeitos imediatos incontroláveis.

Foi esse poder, o poder da Notícia em tempo real e difusão universal instantânea, que levou os governantes do Estado e do Município mais ricos do País a se curvarem, vencidos, à principal reivindicação dos manifestantes.

Luzes de Darcy Ribeiro

Sem ler e entender Darcy Ribeiro não será possível captar e decifrar o significado político das grandes manifestações de rua. 

No seu estudo mais importante (O Processo Civilizatório, Companhia das Letras, 1998), Darcy explica o quê e o porquê:

“Os avanços civilizatórios não se dão por luta de classes, mas por meio de Revoluções Tecnológicas.”

Para criar e sustentar a assertiva, o autor estudou o caminhar histórico da humanidade. E nos ensina que…

“Ao desencadeamento de cada revolução tecnológica, ou à propagação de seus efeitos sobre contextos socioculturais distintos, através de processos civilizatórios, tende a corresponder a emergência de novas formações socioculturais.”

Se assim é – e é! –podemos colocar as manifestações convocadas (mas não controladas) pelo Movimento do Passe Livre no contexto das transformações socioculturais produzidas pelas revolução das tecnologias de informação e difusão.

Gestação de um novo modelo político

As gigantescas manifestações que agora deram nova fisionomia sociocultural ao Brasil não são propriamente uma novidade. Elas surgem na esteira de um fenômeno mundial de levantamentos populares que surgem e crescem à margem de partidos políticos e sindicatos, reivindicando mudanças nos costumes políticos e nas estruturas de governação.

São experiências e valores culturais de democracia participativa. 

Graças à revolução das tecnologias de informação e difusão, os sujeitos sociais institucionalizaram-se e se tornaram falantes. Poderosamente falantes. Apoderaram-se até da Notícia. E a usam como âmago e estratégia dos acontecimentos que produzem, controlando-os ou não. 

Pela Notícia, e com a Notícia, os ideais e as práticas de democracia participativa avançam sobre modelo de democracia representativa, debilitado pelas variadas formas de corrupção – do peculato ao clientelismo; das alianças fisiológicas ao nepotismo; das mordomias legais e ilegais à sem-vergonhice do empreguismo partidário; das licitações com cartas marcadas aos gastos imorais com luxos, prazeres e ostentação, em palácios, banquetes e viagens oficiais; das fraudes orçamentárias aos gastos milionários com a enganação da propaganda institucional – etc., etc., etc. 

E porque muito se rouba e mal se governa, falta dinheiro para a educação, a saúde, os transportes, a cultura, o lazer, a pesquisa científica, a segurança, a proteção ambiental… 

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Sem a capacidade mobilizadora das redes sociais e sem a expansão universal do acontecimento pela NOTÍCIA EM TEMPO REAL, isto é, sem a REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA que desorganizou e já reorganiza as relações e as estruturas sociais, as manifestações não teriam alcançado a grandeza mostrada ao mundo. Nem conquistariam o poder discursivo que as tornou vitoriosas, contra governos poderosos.

O que virá depois, e em que ritmo, não sabemos. Mas mudanças terão que surgir, para a definição e a construção de um novo modelo político, capaz de agregar e combinar o poder da representação delegado pelo voto e o poder participativo da sociedade institucionalmente organizada em torno de valores, direitos e deveres.

Embora com tropeços como esses da burrice violenta dos vândalos, o resultado será inevitavelmente bom.

Que venha o futuro!

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Manuel Carlos Chaparro é jornalista, doutor em Ciências da Comunicação e professor de Jornalismo na Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo