Como se deu, do Norte ao Sul do país, rapidamente, em ritmo sequencial e de forma pacífica, a ida para as ruas para protestar contra políticos corruptos e ineptos e pedir um serviço público adequado nas áreas de transporte, saúde, educação? De onde veio a mobilização para que milhões de pessoas, em sua maioria jovens, combinassem encontrar-se e, principalmente, por que o comparecimento foi massivo? A ideologia, a consciência política e os partidos, assim como as grandes instituições e organizações civis, não passaram no teste de DNA. A mídia mostrou imagens, cobriu as caminhadas, mas não mostrou personagens, não entrevistou todos os governantes registrando a perplexidade da classe política nem as impressões dos empresários. Poucas (pelo menos insuficientes) foram as entrevistas em profundidade com as pessoas que compareceram às manifestações. Menos ainda, com policiais ou com lideranças de instituições e grupos organizados. Praticamente inexistiram investigações jornalísticas junto àquelas pessoas inicialmente chamadas pelos locutores de rádio e TV de “manifestantes radicais”, para saber por que agiram de uma maneira (bastante) diferenciada, e o que pretendiam.
Não pretendo abordar os grupos que de forma sistemática marcaram presença com atos de destruição – isso merece atenção (e muita), mas não é o assunto aqui. Pelo menos um dos motivos para esse tipo de cobertura (muitas fotos e áudio legenda), que lembra as matérias da revista O Cruzeiro (apesar de ser pela TV), é o reduzido número de repórteres (principalmente de jornais e revistas) disponíveis para ir a campo e acompanhar presencialmente os acontecimentos e aprofundar as reportagens sobre as manifestações, e ao mesmo tempo, garantir as muitas outras pautas necessárias ou obrigatórias do dia-a-dia.
Raiz de batata
Outro motivo é a inadequação dos processos analógicos de produção jornalística no enfrentamento de um tsunami digital com adesão massiva do público jovem – que vota, consome e – surpresa – pode sair do Face. Os parâmetros de comunicação social mudaram muito. Ora bolas, direis, isso é óbvio. Mas é isso mesmo. E interagir com o que está acontecendo agora exige humildade intelectual, abandono de velhas cartografias empresariais estratégicas e uma busca sincera por respostas que deem sentido ao que estamos vivendo cultural, política e socialmente, a partir de uma nova maneira de pensar: a maneira gestada pela relação digital. Um novo mundo, podem acreditar. Em gestação, mas um novo mundo.
Nesse novo mundo, algumas mágicas aconteceram. Os bebês já tentam esticar as fotos e acham que quando a tela não dá zoom é porque ela está com defeito. Conviver transformou-se em viver. com e, Alakazam!: a comunicação virou uma batata! Ela alimenta, engorda e faz crescer. Quando está quente, aqueles que (ainda) estão comodamente assentados sobre velhos modelos de controle econômico, político e social ficam frente a frente com um problemão. Quem está sob estes modelos percebe uma mudança (essa, sim) radical. Porque o enraizamento da comunicação digital é como a raiz da batata, um rizoma que não para de crescer em todas as direções ao mesmo tempo, com um mínimo de exigências. Assim como raiz da batata, a internet cresce decretando o fim da linha reta, dos controles aos limites de sua expansão.
A expressão “redes sociais”, na ponta da língua para explicar a rápida mobilização dos jovens em direção às manifestações não dá a dimensão da mudança cultural que ela gravidamente carrega. A informação postada em mensagem endereçada a um “amigo” ou ao amigo de um amigo deixou de ser uma letra fria. Não é lida como uma notícia escrita para leitores anônimos. Não é um cartaz impresso convocando para uma manifestação pública. Virou raiz de batata: é a ampliação do RSVP.
Zona de credibilidade implícita
O internauta conhece quem escreveu a mensagem, ou conhece alguém que conhece quem escreveu. Quem conta a notícia tem nome, é conhecido ou pode vir a ser. Recebe-se, em tempo real, os ais e uis de quem levou um empurrão, cheirou gás ou levou uma bala de borracha no olho, na testa. É como receber um bilhete pessoal, ou interceptar um. Entrar no rizoma é entrar em contato, confirmar-se como alguém, com nome, foto, perfil e amigos, muitos amigos – que, se não são, podem vir a ser. Assim como também podem simplesmente ser deletados, ou espinafrados. Mas uma coisa é certa – sempre haverá alguém para trocar mensagens. Acabou a solidão.
Lembra o momento em que, numa área sem urbanização, o morador sente que passa a existir por ter número de casa e nome de rua. Do limbo para um ponto definido no correio. No rizoma da batata, cada novo adicionado existe por inteiro, com direito a voz. Talvez alguém pense: que diferença isso faz? A diferença da autoestima, de ser alguém, de poder manifestar-se, mostrar-se, comentar e receber respostas pessoais. É a comunicação carregada de identidade emocional. O acesso à página pessoal tem que ser permitido pelo dono dela. O que chega só chega porque foi endereçado por alguém. Cada mensagem funciona como um aporte emocional, pleno de carga afetiva.
Não é novidade – as mensagens postadas no Face, ou em qualquer outra rede, estão envolvidas em valor emocional. Trazem fotos, comentários que refletem relações domésticas de carinho, amizade. Casamentos, festas, viagens, novos looks,nascimentos de bebês, dicas de serviços em geral, propostas de associações em games ou movimentos sociais voluntários. Pessoas que nunca antes se expuseram a mensagens públicas ou semipúblicas a respeito de suas vidas privadas agora postam fotos entre amigos ou familiares, posam sem a menor cerimônia em posts que são curtidos e comentados, criando uma ligação que dá uma sensação de relacionamento amigável, quase uma zona de credibilidade implícita – na onda do rizoma da batata. Se um Grande Irmão arquiva isso tudo, ok, é pauta para outra conversa.
Multiplicai as batatas
Mas é fato: quando a rede web da raiz de batata leva uma mensagem, cada ponto de contato funciona como um papo, uma conversa pessoal, não como um alto falante. É um viral, a disseminação de uma ideia/ informação formando contatos pessoais em série, o que é extensamente explorado pelas pesquisas de mídias digitais. Chovendo no molhado: o sentimento de dividir conhecimento, participar de uma ideia proposta, repartir o que se sabe, estar junto e ensinar algo a alguém, adiciona valor às ações – são elementos de grande propulsão em um evento coletivo, ou em uma manifestação política. Desta forma, a capilarização da comunicação digital através das redes sociais, em ambiente rico de representações simbólicas, leva a uma retomada do humanismo: as relações de conhecimento reforçam laços simbólicos, conseguindo em poucos dias o que grupos organizados analógicos tentam durante anos e muitas vezes não conseguem: união em torno de uma idéia e a ação para que ela se torne real.
Não são, ainda, projetos, propostas e articulações, mas são o começo. Mensagem aos políticos? Que tal perceber que agir em benefício próprio nos bastidores, distante dos eleitores, dizendo uma coisa e fazendo outra, sem compromisso real com a batata virtual, tem grandes chances de começar a dar muito errado? É… a batata, acusada de ser puro amido, chegou a ser chamada de “vingança de Atahualpa” porque foi para a Europa a partir dos saques espanhóis aos suprimentos incas, está virando o jogo. Tiro do site http://saude.abril.com.br/edicoes/0278/nutricao/conteudo_179319.shtml: uma curiosidade: o Journal of Agricultural and Food Chemistry, dos Estados Unidos, publicou em 2003 uma pesquisa que comprova a existência, na batata, de uma substância que age como antioxidante. Ou seja, ela anula a ação dos radicais livres, moléculas instáveis de oxigênio que atacam as células…
E termino este artigo já no solstício de inverno (que iniciou dia 21/06) em homenagem a nossa webatata com a oração cerimonial de um Rei Inca, quando ele reunia os representantes das províncias do imenso Império na capital Cuzco. Essa oração foi traduzida da língua original para o espanhol pelo agrônomo Marcos Reinstein.
“Ó, Criador! Senhor dos confins do mundo, misericordioso, que dás vida às coisas e que neste mundo criastes os homens para que comessem e bebessem, multiplicai os frutos da terra, as batatas e os demais alimentos que criastes, multiplicai-os para que os homens não padeçam de fome nem de miséria, para que todos se criem, não haja geada nem granizo; guardai-os em paz e a salvo!”
Amém.
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Cristina Rego Monteiro é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura, professora da Escola de Comunicação da UFRJ e coordenadora-geral da Central de Produção Multimídia da Eco/UFRJ