Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Globalismos, localismos, micropolíticas

Acontecimentos ímpares na História recente do Brasil ocorreram nas duas últimas semanas deste junho de 2013. Entre o atabalhoamento e a precipitações, os meios de comunicação oscilaram entre a tentativa inicial de invisibilizar o que se anunciava nas ruas e a limitação ou direcionamento da abordagem jornalística de acordo com os ataques sofridos por carros de reportagem, ou com a coincidência das manifestações com a Copa das Confederações, que potencializa o mercado ufanista da publicidade.

Entre os intelectuais, antes que perplexidade, houve muita cautela nas análises, pois trata-se de acontecimentos em curso, cuja conclusão ainda é incerta e se faz necessária atenção permanente nas interpretações para diferenciar opinião (mídia) e pensamento (ciência) em meio ao “senso comum” [como “senso comum”, entendo que se trata de “um conhecimento evidente que pensa o que existe tal como existe e cuja função é a de reconciliar a todo custo a consciência comum consigo mesma. É, pois um pensamento necessariamente conservador e fixista” (Boaventura Santos, em Conhecimento Prudente para uma vida decente, 2003, pg. 32). Chauí também dá uma definição interessante: “A ciência distingue-se do senso comum porque este é uma opinião baseada em hábitos, preconceitos, tradições cristalizadas, enquanto a primeira baseia-se em pesquisas, investigações metódicas e sistemáticas e na exigência de que as teorias sejam internamente coerentes e digam a verdade sobre a realidade” (Chauí, Convite à Filosofia,2004 pg. 220)].

Pensando assim, aqui arrisco uma reflexão acerca do que presenciei nestes últimos dias, a começar por uma abordagem quanto à postura da mídia e do jornalismo. Cabe de início perguntar: por que a mídia é também um o alvo?

A Globo não é boba

Nas manifestações, em todo o Brasil, ocorreram os mais variados ataques à mídia, de inofensivas vaias da multidão aos helicópteros equipados com câmeras, à destruição ou pichação de carros de reportagem e mesmo repulsa à presença de jornalistas, sobretudo os da Globo, em alguns casos lamentáveis, como ocorreu com o íntegro e ético repórter Caco Barcelos em São Paulo quando dos primeiros protestos.

Ocorrem aqui duas considerações. Primeiro, a Globo foi das primeiras a tentar descaracterizar as manifestações. Prática, aliás, recorrente ao longo de sua história, como foi seu alinhamento inconteste à ditadura militar, quando, por exemplo, foi contra a campanha das Diretas Já, entre 1983-1984, um dos maiores movimentos civis do país reivindicando a eleição direta para presidente da República depois de 20 anos de ditadura.

Daí vem o jargão “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”. Hoje, o refrão é ainda presente na boca de jovens nascidos na geração de 1990, a contar com idade na faixa de seus 20 anos.

Quatro casos emblemáticos

Ora, das Diretas Já até 2013, a Globo jamais abandonou oportunidades de manipulações. Quatro casos foram emblemáticos:

>> Em 1982, nova polêmica envolvendo a Globo e a cobertura das primeiras eleições regionais livres. No Rio de Janeiro, venceu Leonel Brizola, antiga liderança retornada do exílio com a Anistia de 1979, do Partido Democrático Trabalhista (PDT, centro-esquerda), mas a Globo difundia informações distorcidas de que Brizola perdera a disputa, o que não se confirmou.

>> A edição do debate entre Lula e Collor em 1989, favorecendo a Collor.

>> O desvio do foco, em 2006, da queda do avião da Gol na Amazônia para realçar um escândalo de crime eleitoral (o caso “aloprados”) apontando para suposto envolvimento do PT, em plena disputa para reeleição (confirmada) de Lula, naquele ano.

>> O escândalo envolvendo Erenice Guerra, sucessora de Dilma Rousseff na Casa Civil visando a atingir a candidatura presidencial de Dilma (vitoriosa), que tinha indicado Erenice para a função. Erenice, posteriormente, sequer seria julgada, por falta de provas e inconsistência das acusações de cobrar comissões para intermediar interesses empresarias com o governo.

Ação coletiva

Se a estratégia global obteve sucesso em 1989, fracassou em 2006 e em 2010. Ora, em 2002 Lula já vencera as eleições, um “acontecimento” que, para Suely Rolnik, demonstrou o deslocamento da maioria da população, que ate então via Lula e a si mesma como “subjetividade-lixo”, para outro campo, a de “subjetividade-luxo”. Devemos à filósofa outra brilhante análise das subjetividade do “acontecimento Lula” em 2002 que possibilita compreender o fracasso da manipulação dos media em 2006. A citação é longa, mas pertinente:

“Desde a primeira candidatura de Lula (…) até sua terceira candidatura para presidência da República (1998), (…) para a grande maioria ele era visto com desprezo: ‘sapo barbudo’ é o nome que lhe deram na época. Vigora naquele momento a aceitação passiva e naturalizada do lugar de lixo e, portanto, o auto-desprezo, que tornam impensável a quebra da hierarquia segundo a qual os habitantes da cloaca não têm competência para ocupar um lugar de comando do país. (…) No segundo turno [em 2002], a força de contaminação do modo de presença de Lula desloca mais rapidamente a cena. O sentimento da maioria dá mais um passo na ruptura, ‘ ele é como nós’ e, apesar disso, conseguiu perder o medo de ser humilhado como subjetividade lixo; ele se autoriza uma fala imanente às sensações que se produzem no encontro vivo com a alteridade e sabe de seu valor. Esta política de subjetivação propaga-se por todo o campo social: dissolve-se o medo, uma fala viva começa a circular e uma inteligência coletiva se põe em movimento. (…) Um momento histórico significativo não só pela alegria de uma vitória da esquerda, especialmente por se tratar de um candidato que reúne várias categorias de subjetividade-lixo: de operário metalúrgico a retirante nordestino, imigrante, morador da periferia de São Paulo, passando por deficiente físico a quem falta um dedo (…) e para completar, fala português ‘errado’. Este é apenas o aspecto mais visível e óbvio desta alegria, para não dizer ingênuo e, pior do que isso, perigoso, pois pode confundir-se com esperança, afeto triste que alimenta messianismos, populismo e toda espécie de ideal de um mundo fusional sem diferença e, portanto, sem crueldade sem resistência, sem criação, sem vida. Vital mesmo é a alegria pelo esvaziamento do inconsciente colonial-escravocrata-ditatorial-capitalístico que mantém os brasileiros reféns de uma hierarquia que os fixa na posição de subjetividade-lixo, vítimas de um suposto destino transcendental [Rolnik, Suely, “O ocaso da vítima para além da cafetinagem da criação e de sua separação da resistência”, in Lins, Daniel e Pelbart, Peter Pál (orgs) (2004), Nietzche e Deleuze. Bárbaros, Civilizados, São Paulo, Anna Blume].”

Se ao longo dos anos e das eleições não mudaram os media, mudou o “rebanho tolo” (Chomsky), que mais de uma vez demonstrou que não se deixa levar pela manipulação. A expansão do acesso à internet a partir da última década do século 20 alterou o quadro. Coloca em questão, pois, o poder nos media e o poder dos media. A internet é uma alternativa em expansão aos monopólios de transmissão de informações “ao vivo” (ou “em directo”, como se diz em Portugal). Mas o mais importante a se considerar, e que está um tanto invisibilizado, é o sentimento das populações de que o novo pode emergir, e ele não passa mais pela manipulação de corações e mentes. Está a se consolidar, nos últimos anos, o que Morris e Brainechamam de “consciência oposicionista”, que escapa a análises sociais calcadas em antigos modelos estruturais:

“Muito frequentemente essas análises assumem um mecanismo relacional no qual a desigualdade estrutural ou outra condição social tem consequências diretamente na ação coletiva. As análises clássicas feitas por Weber, Gramsci e Thompson, focam em como as estruturas objetivas de dominação interagem com as experiências subjetivas de dominação para produzir ações coletivas. A cultura funcionaria como ora inibindo ora facilitando a ação coletiva [Morris, Aldon; Braine, Naomi (2001), “Social Movements and Oppositional Consciousness” in Jane Mansbridge e Aldon Morris, Oppositional Consciousness. The Subjective Roots of Social Protest. Chicago: The University of Chicago Press (pp. 20-37)].”

Alinhamento ao padrão Globo

Contudo, a Globo não é boba. Para seguir presente nas manifestações de 2013, de imediato retirou dos microfones de seus profissionais a sua logomarca e seguiu levando ao ar imagens condensadas e discursos que muitas vezes não condiziam um com outro. Ou seja, demonstra ter fôlego e intenções suficientes para não abandonar velhas práticas.

Em geral, foi essa a postura de todas as emissoras de televisão, pautadas pela enxurrada publicitária proveniente do futebol, cunhando e propagando generalizadamente eufemismos como “vândalos”, “arruaceiros”, “baderneiros”, “vagabundos”, em vez de buscarem compreender um novo tipo de cidadão que emerge na sociedade brasileira hoje. Em Fortaleza, exemplos não faltaram. Foi patente a disparidade entre discurso jornalístico e imagens da emissora local da Globo (TV Verdes Mares), quando jovens (“vândalos”, para a emissora) se refugiaram num posto de gasolina diante da ferocidade das forças de segurança, em 27 de junho. Os jovens, contudo, não depredaram o estabelecimento, tampouco roubaram algo. O juiz aposentado pelo TRT Sílvio Mota, ex-membro da Ação Libertadora Nacional (ALN, de resistência a ditadura), foi ao encontro dos policiais e sua foto ganhou a primeira página do New York Times em 28 de junho (ver aqui), mas os jornais locais, na edição do mesmo dia, privilegiaram a abordagem contra o “vandalismo” e somente em 29 de junho postaram a foto e o depoimento do juiz, que foi covardemente atingido por bombas de gás lacrimogênio e confirmou que fora de encontro aos policias para exigir que eles cessassem os ataques aos jovens. Ironicamente, para lembrar Henfil (humorista brasileiro que combatia com sarcasmo a ditadura militar), somente após o “deu até no New Yok Times” foi que a mídia local repercutiu um ato de violência do Estado contra sua própria população que, enfurecida, respondeu à altura, inclusive com jovens atirando paus e pedras na polícia e tudo mais o que vinha pelo caminho, inclusive um ônibus cujo motorista, desavisado, foi parar em meio ao tumulto conduzindo vários torcedores do jogo entre Espanha e Itália que ocorreria próximo ao local do conflito. Beneficiados com propaganda, ainda que residual, da Copa das Confederações e da Copa do Mundo, estão os meio de comunicação se alinhando, inadvertidamente ou não, ao padrão da Globo?

Conexão com um público jovem

Enquanto isso, alguns jornalistas, por alinhamento ou não com seus patrões e patrocinadores, também estão no olho do furacão das interpretações difusas. Titubeiam entre apoio aos manifestantes e a defesa do espaço público para legitimar a ação violenta do Estado. Reitero a questão que já coloquei em outra oportunidade (ver, neste Observatório, “Inimigos da escola”): o corpo e a integridade dos cidadãos, não são nossos maiores patrimônios públicos a serem defendidos pelo Estado?

Jornais e jornalistas se governam por opiniões e interesses pessoais ou coletivos pré-estabelecidos. O que consta nas páginas de todo jornal está quase sempre imbuído do que Briggs chama de “certas fraquezas fundamentais dos jornais que nos obrigam a suspeitar bastante do que dizem e utilizá-los com imensa cautela”. O mesmo Briggs sustenta que os “jornais costumam ser muito tendenciosos, são tremendamente mal informados e só abordam uma pequena parcela da realidade [entrevista do historiador social britânico in PALHARES-BURKE, Maria Lucia Garcia (1996), As muitas faces da História, Campinas, Editora do IFCH-Unicamp]”. Porém, o jornalista pode escolher onde e como atuar com mais autonomia do que o publicitário ou o profissional de relações públicas, estes quase sempre associados diretamente ao consumo ou a uma ideologia.

Mal posicionado nos conflitos de campo, o jornalista corre o risco de perder mais do que o “lide” (jargão jornalístico para “introdução”) da matéria a escrever, mais do que uma abordagem exata das manifestações: o risco é o de perder a conexão com um público jovem e cada vez mais politizado, que reivindica mais liberdade e autogestão e cujas bandeiras vão do aborto a mais Estado social e menos Estado policial, pela não discriminação de gênero e de raça.

“Novíssimos movimentos sociais”

São eles a alimentarem as redes sociais na internet, que impõem novas práticas políticas aspiradas pelo conjunto da sociedade. São eles quem se conectam com jovens de outras partes do mundo e com eles aprendem táticas de resistência direta nas ruas, aperfeiçoadas desde os manifestos de Seattle, em 1999. Mas são, sobretudo, jovens cujas bandeiras, cartazes e palavras de ordem se mostram pautadas pela História recente do Brasil, tanto em aspectos objetivos (contra a ditadura e o prolongamento de suas práticas) quanto subjetivos. Inserem suas necessidades locais em táticas globais. Liberdade, aspiração que no Brasil sempre unificou as massas, fosse nas revoltas da Regência (século 19), na luta dos escravos e da sociedade contra a escravidão ou na luta contra a ditadura militar.

Ancorados na liberdade, os jovens buscam em refrãos de outras gerações palavras para expressarem o que sentem. Em uma manifestação em Fortaleza, vi uma jovem que aparentava 18 anos e pintava um cartaz onde se leria “Cazuza, estamos fechando o puteiro”, numa alusão ao verso de “O tempo não para”, de Cazuza (“Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro, transformam o país inteiro num puteiro, pois assim se ganha mais dinheiro”). As ruas estão plenas de jovens entoando “Que país é esse?”, da Legião Urbana, “Polícia para quem precisa”, dos Titãs, de adolescentes vestindo camisetas negras grafadas com nomes de bandas heavy metal, algumas dizem tudo por si só, como System Of a Down, por exemplo.

Estarão, mídia e movimentos sociais e políticos de esquerda atentos à reconfiguração dos “novíssimos movimentos sociais” (Boaventura Santos) que podem advir dos desejos e afetos desses jovens? Trata-se de uma massa que busca novas formas de organização e conquista de aspirações que lhes assegurem um presente e um futuro dentro dos padrões do “Estado de bem-estar social”, cada vez mais reduzido e sonegado aos jovens europeus.

A fórmula da imbecilização

Aqui, a arma tem sido a “alegria revolucionária”, que, segundo Daniel Lins, nem sempre “foi pensada ou sentida como uma força, menos ainda como uma potência revolucionária. (…) A alegria pode ser também associada à liberdade que possui todo sujeito de agir, amar e cultivar sua felicidade. (…) Diria que a alegria é o próprio sentido da existência, pois é a realização do desejo vital e erótico de tornar-se amoroso de si, dos outros e da totalidade. Eis a força da alegria ativa: aquela na qual nos modificamos a nós mesmos aumentando, assim, nosso conatus, nosso desejo, nosso ser em devir, nossa vontade positiva de potência, fôlego criativo, plataforma flutuante, arquipélago contra as paixões tristes [Daniel Lins em “A alegria como força revolucionária”, in Furtado, Beatriz e Lins, Daniel (orgs. 2008), Fazendo Rizoma, São Paulo, Hedra]”.

Resta saber se se trata de incapacidade ou de estratégia da mídia, pautada por “especialistas” que compõem o que Chomsky [Chomsky, Noam (2002), A Manipulação dos Media. Os efeitos extraordinários da propaganda, Lisboa, Editorial Inquérito. Vêm deste texto todas as citações e referências de Chomsky presentes neste artigo] chama de “classes educadas” e algum círculo de intelectuais que apoiam o discurso do poder presente nos media. Trata-se da mesma categoria de intelectuais que Natrajan aponta como forjadores de “consentimentos espontâneos” do grande público, com o propósito de atender aos interesses dominantes [Natrajan, Balmurli (2004), Masking and Veiling Protests. Culture and Ideology in Representing Globalization, Cultural Dynamics, Vol. 15]. São eles os responsáveis pela “fabricação de consentimentos” (Chomsky) a serem veiculados pelos media para determinar a maneira de agir do “rebanho tolo”.

Aos especialistas cabe a fabricação de entretenimento, de “ilusões necessárias e ultrassimplistas” para distrair o “rebanho” no entreato das eleições, quando o “rebanho” não tem que “dar a sua opinião” (e lembro-me aqui da perspicácia de Muniz Sodré, que já em 1972, em A Comunicação do Grotesco [Sodré, Muniz (1977), A Comunicação do Grotesco, Rio de Janeiro, Editora Vozes], discorre sobre a fórmula da imbecilização do público adotada por programas de auditório, fórmula mantida em programas do gênero nas TV’s de todo o mundo ocidental nas últimas décadas).

“Intelectual tem papel público”

De novo, há perigo: a juventude demonstra claramente, em nível mundial, que atendeu à mensagem de filmes críticos ao big brother global da mídia, como o alemão Os Educadores e o inglês V, de Vingança. Estamos assistindo à ascensão da geração “V”: de vergonha da condição social brasileira; de vingança contra os conchavos políticos na condução do Estado; de vinagre para combater os efeitos do gás da polícia. Uma geração que reverte a apropriação, pela publicidade midiática capitalista, da subjetividade. Os jovens estão ressignificando slogans da propaganda ligada ao campeonato de futebol para chamar o levante às ruas, pichando “Vamos colorir o Brasil” (Coca-Cola), gritando “Vem pra rua que é a maior arquibancada do Brasil” (Fiat), “O gigante acordou” (Johnny Walker).

Cabe, sempre, aos pensadores e intelectuais atentarem para os discursos midiáticos paralelamente às análises sociais e históricas e a presença pessoal nas manifestações (em Fortaleza, em 27 de junho, era patente a presença de professores universitários, inclusive de uma representação do sindicato das universidades federais, a ADUFC). Na mídia, campo privilegiado da propaganda, os “especialistas” tomam o lugar dos intelectuais. Estes defrontam-se com o desafio de nem se transmutar em “especialistas” e nem se omitir de ocupar espaço nos media pois. Said nos leva a uma melhor compreensão do que afirmo. A citação é longa, mas pertinente:

“Devem ser os intelectuais a questionar o nacionalismo patriótico, o pensamento corporativo e um sentido de privilegio de classe, de raça ou de género. A universalidade significa correr o risco de ir para além das certezas fáceis que nos são fornecidas pelas nossas circunstâncias, pela língua e pela nacionalidade, que tão frequentemente nos protegem da realidade dos outros. (…) Segundo Brenda, o problema do actual grupo de intelectuais reside no facto de eles terem emprestado a sua autoridade moral àquilo que ele, numa expressão premonitória, chama ‘a organização de paixões colectivas’, tais como o sectarismo, o sentimento das massas, a beligerância nacionalista, os interesses de classe. Embora Brenda estivesse a escrever em 1927, bem antes da época dos meios de comunicação de massas, ele pressentiu quão importante era para os governos terem como servidores aqueles intelectuais que podiam ser chamados, não a conduzir, mas a consolidar a politica do governo, a debitar a propaganda contra inimigos oficiais. (…) Há o perigo de a figura ou imagem do intelectual desaparecer num mar de pormenores, e de o intelectual se transformar em apenas mais um profissional ou num numero de uma tendência social, (…) mas quero também insistir que o intelectual é um indivíduo com um papel público específico na sociedade, que não pode ser reduzido simplesmente a um profissional sem rosto, um membro competente de uma classe que apenas trata da sua vida [Said, Edward W. (1999), Representações do Intelectual. As palestras de Reith de 1993, Lisboa, Edições Colibri. As citações são das páginas 16, 25 e 28].”

O colapso social

Simultaneamente, sindicatos, organizações estudantis, populares e partidos políticos devem compreender que novas bandeiras estão postas, e que as práticas do tipo “centralistas democráticas” estão desgastadas, exigindo-se a horizontalização de suas estruturas para que se abram ao novas intervenções institucionais que se exigem. Pois o que está em disputa não é somente a mudança na gestão estatal, e sim em toda a estrutura do que até aqui conhecemos como sociedade civil organizada. As disparidades são claras. Por exemplo: em Fortaleza a OAB, no passado presente na linha de frente das manifestações por mais cidadania, age timidamente e não se faz presente nos protestos ao lado dos manifestantes, enquanto atua incessantemente a organização Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAAP), sobretudo para libertar jovens manifestantes presos nos conflitos (foram 97 em 27 de junho, sendo 32 adolescentes).

Adolescentes presos, crianças em meio à multidão sendo atingidas por gás lacrimogênio e ausentes, da mídia e dos protestos, estão membros do Ministério dos Direitos Humanos e das comissões deste setor, ligadas ao Estado e à Prefeitura Municipal. Exatamente num momento delicado em que a polícia carrega indiscriminadamente contra todos os cidadãos. Pelo menos dois manifestantes já foram mortos, diretamente ou não, por conta da ação policial: um jovem que caiu de um viaduto ao fugir da carga da PM em Belo Horizonte e uma trabalhadora da limpeza urbana por inalação de gás lacrimogênio.

Se os órgãos de Direitos Humanos estão se pautando mais no discurso da mídia do que na evidência dos fatos, podem vir a ser responsabilizados por eventuais ocorrências mais graves em cortes internacionais? Porque as ruas não dão sinal de que se calarão. Somada essa omissão no campo dos Direitos Humanos com a permanência do deputado e líder religioso Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados com apoio da maioria parlamentar ao governo federal, presenciamos um colapso na área, reforçando os questionamentos quanto serem os Direitos Humanos mesmo universais ou um conjunto de conveniências políticas. Nesse sentido, é atual a preocupação levantada recentemente por Boaventura Santos [Santos, Boaventura de Sousa (2006), “Para uma concepção intercultural dos direitos humanos”, in A gramática do tempo: para uma nova cultura política]: estabelecer solidamente os Direitos Humanos é um dos grandes desafios da modernidade, e as dificuldades em consegui-lo tem a ver com a crise que a modernidade passa.

Crise esta presente no discurso político e midiático, com a violência pautando as relações institucionais e sociais, espetacularizada nos programas policiais da TV brasileira. No caso brasileiro, devemos considerar o colapso social urbano, mas também o não-urbano (sobretudo entre indígenas e de pescadores): favelados, sem-teto, indígenas, trabalhadores sem terra sempre emergem no discurso midiático como “vândalos”, “invasores”, “selvagens”, raramente como cidadãos.

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Túlio Muniz é historiador, jornalista e pesquisador da Universidade Federal do Ceará