A desmedida violência policial na repressão aos protestos das últimas semanas, a chacina no conjunto de favelas da Maré, no Rio – que provocou a convocação de um ato ecumênico para terça-feira (2/7) na Avenida Brasil – e o impressionante aparato militar deslocado para conter os manifestantes nas imediações do Maracanã, na final da Copa das Confederações (30/6), continuam a alimentar as discussões sobre o estado em que vivemos.
O episódio do Maracanã, aliás, é muito significativo: além de não poderem circular de carro pelas ruas bloqueadas, os moradores deveriam levar consigo um comprovante de residência, “já que a circulação a pé só será permitida a quem portar ingresso ou comprovante de residência na área interditada. Atenção, ao sair de casa, leve conta de luz, telefone ou similar para evitar ser impedido de retornar”. Era a recomendação da Prefeitura, que distribuiu nota aos síndicos dos prédios da região, mas essa aberração que estabeleceu uma zona de exceção no entorno do Maracanã não chamou a atenção da maioria dos meios de comunicação, à parte a ESPN.
Fora esses casos de violência explícita, outros dois fatos que marcaram as últimas semanas merecem uma pequena análise, pois são muito significativos sobre a maneira de agir das autoridades. O primeiro é a reviravolta que os moradores das favelas da Rocinha e do Vidigal impuseram ao festivo discurso oficial, contestando iniciativas cosméticas. O outro é a tentativa de manipulação do movimento que se estabeleceu na frente da residência do governador Sérgio Cabral.
Do teleférico à vala negra
O palco estava armado, como de hábito: no palanque, o governador fazia juras de amor à parceria com a presidente da República, enfatizando os laços de amizade e compromisso entre o Rio e Brasília para a realização das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) na favela da Rocinha. “Tentam nos dividir, mas não vão conseguir. Não passarão”, afirmou.
A consigna clássica, tão fora de lugar, dava o tom da artificialidade daquilo tudo.
Por sua vez, a presidente fez questão de elogiar o vice-governador, recordando que o próprio Lula o havia chamado de “pai do PAC”. Deu sua contribuição para a campanha à sucessão estadual, no velho estilo: eu te apoio, tu me apoias e tudo segue como sempre, desde que mantenhamos esse povo sob controle.
Na véspera, em São Paulo, havia ocorrido a primeira grande repressão policial aos movimentos que dali em diante tomariam as ruas do país, mas as autoridades aparentemente não deram a devida importância àquela situação.
Em dez dias, tudo se inverteu. Rocinha e Vidigal desceram em passeata até a casa do governador, rasgando a fantasia, e detonaram o discurso pré-fabricado: não queriam teleférico, queriam o cumprimento sempre adiado das promessas de saneamento. Acabar com as valas negras nas quais, geração após geração, os moradores têm de pisar. O governador teve de recebê-los, mas foi o vice, candidato à sucessão, quem apareceu publicamente para se comprometer com as obras que realmente importam.
(Bem verdade que essas reivindicações já tinham sido feitas no dia da festa no palanque, por um grupo de moradores que não participou do espetáculo, mas foram ignoradas ou mal tiveram eco no jornalismo das grandes empresas. Rara exceção foi o portal UOL.)
A maneira pela qual as autoridades e a imprensa lidaram com essa reviravolta é muito instrutiva: acostumadas, ambas, aos eventos programados, se surpreendem quando algo foge do previsto. No caso daquela passeata, além do mais, era enorme a preocupação com depredações: afinal, o que se poderia esperar desse povo desobediente, senão manifestações de ódio? Não foi o que se viu, e os moradores provaram esse gosto especial de virar a pauta a seu favor.
Produzindo factoides
Outro imprevisto foi o movimento de ocupação da Avenida Delfim Moreira, no Leblon, na esquina da rua onde mora o governador. Ao final de uma passeata na Zona Sul, numa sexta-feira (21/6), um grupo montou barracas no local disposto a só levantar acampamento após ser recebido em audiência.
Passados alguns dias, um dos representantes abandonou a área, denunciando, via Facebook, as ameaças que disse ter sofrido de desconhecidos que passaram a circular por ali. Paralelamente, um suposto “grupo dissidente” daquela ocupação foi chamado a se reunir com o governador. Na quinta-feira (27/6), meia dúzia de jovens e vários secretários estavam com Sérgio Cabral no Palácio Guanabara, ao lado de cinegrafistas e fotógrafos que documentavam o encontro.
Tudo o que se conseguiu, entretanto, foi evidenciar o caráter fake daquela reunião, para o que contribuiu o evidente despreparo daqueles jovens: ao ser entrevistado, o porta-voz mal conseguia pronunciar uma frase inteira e parecia repetir um discurso muito mal ensaiado. Dizia que o grupo não representava ninguém – então não conseguiu explicar por que foi recebido pelo governador –, mas que ao mesmo tempo havia criado um movimento chamado “Somos o Brasil”. Simples, modesto assim.
Em suma, faltou media training.
A grande empresa privada que presta assessoria ao governo do estado do Rio de Janeiro está tendo trabalho, mas parece não perceber que o público não é trouxa.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)