Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Saímos do Facebook

Em meio à grande oferta de informações e interpretações a respeito das manifestações das últimas semanas, ouvi um jornalista afirmar que o real e o virtual tornaram-se a mesma coisa. De fato, um olhar sobre a simbologia e a plasticidade das redes sociais e das ruas revela elementos semelhantes. É possível que isso se dê pela intensificação do trânsito entre essas esferas que agora se verifica.

A ideia do “saímos do Facebook”, presente em alguns cartazes, revela a diferença com relação ao cenário anterior à onda de protestos. Temas para os quais se colhiam muitas assinaturas em petições online não eram antes capazes de articular manifestações no “mundo real”. Este foi o caso das várias assinaturas contra Renan Calheiros. Elas não foram para as ruas e viraram apenas uma reunião de poucos gritos na frente do prédio do Congresso. Mas, depois do pavio aceso pelo Movimento Passe Livre e do fogo atiçado pela truculência da PM de São Paulo, a explosão foi se alimentando das redes sociais para a rua e da rua para elas. E o diálogo/semelhança entre esses dois mundos tornou-se visível.

Se olharmos para as ruas e para as redes agora que “despertou o gigante”, alguns elementos se mostram mesmo similares. Cartazes nos protestos do mundo real lembram posts do Facebook. E esses cartazes, uma vez fotografados, viram posts. A partir daí, curtidos e compartilhados, retornam às ruas novamente em propagação. E vice-versa. Situação parecida se dá com os conteúdos desses cartazes/posts: ideias e temas que aparecem nas redes ou nas ruas e transitam de uma para a outra a se retroalimentar.

E quem nos representa?

Mas o que chama mais a atenção nessa semelhança, nesse trânsito, é a possibilidade do oculto, do fake. É que, nesses processos, não se tem, necessariamente, a autoria, a identificação de quem se pronuncia. A rua fala por vozes que se expõem na “praça”, o espaço público. Mas a praça é também o lugar dos incógnitos. Tomado pela multidão, esse espaço assume a capacidade de ocultar, tornando pessoas em números. E essa capacidade de ocultação se intensifica, já que define também a própria internet. O mundo da rede e das redes é o mundo da não cara ou das muitas caras. É o mundo do virtual no sentido de que posso ser tudo, inclusive, irreal.

Quem sabe um pouquinho de teoria da comunicação tem noção de que o sentido do que é dito, de uma dada mensagem, depende, dentre outros aspectos, de: quem fala, para quem se fala, sobre o que se fala, por que meio se fala e em que contexto se fala. E nem é preciso mesmo saber disso para entender que o significado de uma frase qualquer, como “caminhamos para a mudança”, transforma-se radicalmente em função desses elementos e da maneira como eles se compõem.

Observando a multiplicidade de fatos, cartazes, fotos, vídeos, páginas e posts relacionados ao Occupy brasileiro, o nosso “Vem pra Rua”, é clara a ausência de identificação não só do “quem fala”, como também do “quem fala por”. Além da ideia da não identidade, do não identificado das multidões e da internet, o que fica explícito é a negação da própria representação política.

Quem informa e quem diz o quê

O “não me representa”, grito que tem se mostrado comum em meio à diversidade de demandas dos manifestantes, é a própria negação dos partidos e das formas de representação tradicionais. Unida à ocultação do quem fala na multidão e na própria internet, essa negação abre lacuna perigosa. Ninguém me representa, mas há sempre alguém por traz de páginas, vídeos, ruas, posts, fotos e assim por diante. E nesse processo de trânsito quase simbiótico da rede para a rua, da rua para a rede, onde não se tem mais o fio de onde tudo começou, reafirma-se a ideia do “falo por mim” já que curto, compartilho e confecciono meu cartaz. Mas, na verdade, ajo em fluxo com ideias, imagens e gritos que transitam com rapidez incrível nas muitas combinações e intercâmbios contínuos entre o virtual e o real.

Não nego o poder da multidão nas ruas e o das novas mídias neste cenário cheio de força, debates e novidades que vivenciamos agora. Realmente acordamos e isso é emocionante. Mas me inquieto um pouco ao observar, por exemplo, que encontro poucas informações sobre “quem criou e quem faz” tanto na página da Ninja (sigla para Narrativas Independentes Jornalismo e Ação), que tenho curtido e compartilhado, quanto na página intitulada Golpe Militar 2014, cujo nome já me dá arrepios.

É claro que qualquer observador/navegador um pouco mais atento vai buscar pistas e trilhas para saber quem está falando em determinado espaço virtual ou real. Foi o que aconteceu comigo em relação à Ninja. Procurei descobrir do que se tratava e quem fazia, já que passei a usá-la para informação própria e reprodução de conteúdo. Mas nem sempre os usuários desses conteúdos fazem isso: ou por serem consumidores de informação mais ingênuos ou pela própria rapidez e quantidade de oferta de fatos, fotos, vídeos, palavras…

As estratégias horizontais, os canais alternativos de comunicação, as grandes manifestações e a constância de assembleias temáticas têm seu poder e estamos aqui para ver seus desdobramentos. Mas é sempre bom ficarmos atentos à possibilidade e impossibilidade de se assumirem as identidades de quem fala, quem mobiliza, quem publica, quem informa. Não que se pretenda colocar rédeas ou controle nessas formas de encontro, manifestação e comunicação. Isso seria ingênuo e perigoso. Mas é bom que se pense um pouco sobre de onde vem a informação e quem está dizendo o quê.

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Erika Assis é graduada em Letras, mestre em Antropologia Social e doutora em Ciência Política