É raro, na grande mídia, exceto no jornalismo popular, que os indivíduos na condição de fontes tenham tanto espaço quanto o que foi dado pela revista Veja de 26 de junho de 2013, na cobertura do epicentro das manifestações de rua no Brasil. Nesta edição, há citações e depoimentos de 306 fontes, sendo a maioria de populares (47%). Mas, excluindo-se os 119 depoimentos de rodapé e as dezenove mensagens na coluna Leitor,apenas doze dessas fontes foram referenciadas no corpo das reportagens, a maioria sem identificação pelo nome, apenas como “manifestante”, “estudante”, “torcedor”, “passageiro”, “usuário”, “vândalo”.
Esse tipo de fonte contribui para autenticar os acontecimentos e gerar sensações. Ou seja, o jornalismo apropria-se da fala popular nem sempre para explicar o ocorrido, mas para ampliar os fatos e criar empatia com a audiência. A fonte individual aparece notadamente como vítima, testemunha ou cidadão reivindicador que busca visibilidade para reclamar os seus direitos. A figura da vítima é carregada de noticiabilidade, pois o público se interessa pelo sofredor, injustiçado ou pela desgraça do destino e, como testemunha, torna-se um álibi para a mídia, pois representa aquilo que viu ou ouviu, como partícipe ou observador.
Entre as fontes individuais preponderam os populares, que falam por si e não como interlocutores de uma organização ou grupo social instituído. Na Veja, pelas profissões das fontes, há uma predominância da classe média ou, como prefere a Sociologia Política, da burguesia: administradores e escriturários (15%), empresários (11%), advogados (11%), médicos e dentistas (8%), arquitetos e engenheiros (8%), professores (6%), além de estudantes (33%) e outras profissões (8%). Os depoimentos também comprovam isso: “Quem está aqui é a grande classe média que sofreu calada” (Flavio de Bieux). “Nós, que pertencemos à classe média, elegemos essas pessoas que estão aí no poder e elas não fizeram nada pela gente” (Fabíola Fonseca José).
“Umaguilhotina política nas urnas”
A busca pela visibilidade encontra várias formas de pautar a mídia: os “manifestantes não precisam mais se acorrentar na prefeitura” para virar notícia, constatam as repórteres Bela Megale e Carolina Rangel. Os ecos das manifestações se ampliaram: “Estamos fazendo os protestos durante a Copa das Confederações para chamar atenção também sobre os gastos com as obras para a Copa do ano que vem” (Thiago Fernandes). “Vou ali dar uma entrevista ao New York Times” (Mayara Vivian).
O “sentimento de pertencimento”, expressão cunhada por Max Weber, ganha relevância na mídia contemporânea por atuar no imaginário social individual e coletivo, na criação e delimitação de interesses aglutinadores. Para validar o pertencimento ao grupo, o discurso social busca a objetivação nos valores, ações e no mundo comum. Por isso, ao justificar a participação nas manifestações, há um discurso recorrente das fontes individuais na Veja: “Estamos aqui para fazer parte desse momento histórico” (Bruno Tupinambá). “Estou aqui para engrossar o coro contra a política econômica” (Caian Martins). “Fiz questão de lutar por um país mais justo” (Rafael Calabria). “Eu me sentiria uma covarde se deixasse essa moçada vir batalhar sozinha na rua” (Irene Alcaraz).
Este sentimento também se conjuga no pertencimento ao grupo familiar, de querer “que meu filho de oito anos tenha, no futuro, um país melhor do que eu tive para viver” (Lucília Mesquita). “Tenho uma filha de 14 anos. É importante participar, pois isso aqui vai decidir o futuro dela” (Fabio Vasconcelos). “Vim para ver o Brasil que estamos formando para nossos filhos” (Regina Morais). Pelo voto, a vontade individual torna-se coletiva. No entanto, os manifestantes não atribuem ao voto um valor político, mas uma função social e estatística, pois alguns não acreditam na sua validade, por conta da compra de votos e promessas falaciosas e solenes de que se está decidido a não cumprir. Isso se evidencia em depoimentos incrédulos ao pleito eleitoral: “Avacalharam o país a troco do voto” (Amador Bueno). “Não voto há cinquenta anos. Adianta colocar corruptos no poder? (José de Freitas). Há aqueles que acreditem na “vingança” pelo voto: “Que a voz das ruas ecoe mais alto nas urnas em 2014” (Antonio Carlos Maragoni). “Espero que as pessoas se conscientizem e, no ano que vem, promovam uma espécie de guilhotina política nas urnas” (Emerson Castelo Branco).
Um conjunto de signos
Percebe-se também o poder do indivíduo em confrontação à realidade política, pois a voz de um intensifica a do outro. Vários discursos demonstram isso na Veja: “Viemos para mostrar a força do poder das massas e dos estudantes” (Gustavo Titz). “Estamos em uma época em que as estruturas do poder têm de ser repensadas” (Janete Kirst). “Temos que mudar a estrutura do poder porque nosso sistema político-eleitoral não nos representa mais” (Juliano Gagliardi Nesi). E assim ecoa o poder dos protestos: “A voz que vem das ruas é a carência de serviços públicos decentes” (Antonio Carlos Maragoni). “Esta é uma oportunidade única de fazer valer a minha voz” (Lucas Gomes).
Além da voz, nos manifestos reapareceram os rostos com as cores da bandeira brasileira. Por si só os rostos são carregados de sentidos e ao mudar os seus traços ampliam-se os significados. A professora Elisabeth Teixeira Ribeiro justifica um dos acessórios da rostidade dos manifestantes: “Saí às ruas com nariz de palhaço, pois é assim que me sinto quando vejo os candidatos em que votei no poder”, o que remete às interpretações de significâncias. Nas manifestações e na Veja multiplicaram-se os rostos cobertos por balaclavas, bandanas, lenços, respiradores, óculos de natação e máscaras. Por mais que se queira, a máscara não anula o rosto, cria um novo significado para ele. Nas manifestações predominou a máscara de Guy Fawkes, personagem que luta contra a tirania e opressão na série em quadrinhos de Alan Moore e David Lloyd. e no filme V de Vingança, dirigido porJames McTeigue, de 2006, tendo por slogan: “Ninguém devia temer seu governo. O governo é que devia temer seu povo.”
A máscara cristaliza um conjunto de signos e interpreta uma vontade de um corpo excluído, que busca no protesto a voz da liberdade e de vingança pela “desconfiguração” social. Em um dos cartazes, em Campos dos Goytacazes (RJ), portado por um estudante com a máscara de Fawkes, lê-se: “Não estou aqui pelo meu emprego. Não estou aqui para baderna. Não estou aqui por partido político. Estou aqui pelo que é justo!”, em foto na coluna Veja Essa.
Várias lições para o jornalismo
Após um momento contemporâneo explosivo, da overdose de manifestações à ressaca das ruas, na Veja as fontes populares indicam questões cruciais: “Fechamos as ruas para abrir caminhos” (cartaz). “Precisamos de mais saúde, educação” (Maria Eduarda). “Precisamos conquistar o que falta na saúde e na educação” (Naline Ferraz). “Quero mudanças na política, na educação e na saúde” (Thais Sottili). “Quero bom transporte, saúde e educação” (Renata Becker). “Educação básica deve ser prioridade para o país melhorar” (Márcia Neves Silva). “É um absurdo gastar com a Copa sem ter condições mínimas de transporte, saúde e educação” (Luana Barcellos). “É preciso ter mais competição e acabar com o monopólio das empresas de transportes” (Adolfo Sachsida). “A razão principal é lutar contra a corrupção” (Caroline Luzzato).
Os políticos e seus partidos, impedidos de participar, foram os principais alvos das manifestações, devido à corrupção e ineficiência política. Afinal, o povo não compreende o suficiente a ideologia dos partidos, apenas os seus interesses. Para isso, basta verificar na Veja: “Lutamos contra o governo e os partidos” (Roberto Spínola). “Estou muito orgulhosa do que está acontecendo, principalmente porque não estou vendo bandeiras de partidos” (Janete Kirst). “Os políticos roubam, aumentam os impostos e nada, mas nada mesmo melhora neste país” (Aline Naime). “Os políticos têm mordomias e regalias, e ainda trabalham pouco” (Fernanda Bustamante). “Cansei de sentir roubada por esses políticos que estão aí. Chega de tanta corrupção” (Bianca Pereira). “Mesmo quando condenados, os políticos nunca pagam pelos crimes que cometem” (Pedro Kroth Mahl). “Basta de corrupção” (Júnior Groff).
Enfim, percebe-se que a voz do povo não é apenas a voz de Deus, mas dele próprio. Ao ouvir as fontes populares, o jornalismo sai do regalo dos releases e da preferência pelas fontes oficiais e especialistas. Isso porque a mídia tem certa dificuldade em ir às fontes por questões operacionais e comodidade das redações em receber as informações mastigadinhas e formatadas para publicar. Notadamente a mídia impressa reluta em usar a linguagem coloquial por ser simples e direta, preferindo o léxico das fontes articuladas, que “falam editado” e confirmam as teses das pautas prontas. Das ruas eclodiram várias lições em brasilês castiço, inclusive para o jornalismo e as organizações de mídia.
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Aldo Antonio Schmitz é jornalista e professor, com mestrado em Jornalismo e autor do livro Fontes de notícias