Nos meus tempos de aluno do Colégio Santa Cruz, instituição modelar de ensino criada por padres canadenses, que tinham uma verdadeira preocupação social, embora a escola fosse frequentada pela elite paulistana, nas noites frias de inverno nós saíamos numa Kombi sempre acompanhados de algum padre ligado à OAF (Organização de Auxílio Fraterno), para levar não apenas abraços, mas sopa farta e quente, pão, café e cobertores para o povo da rua no centro de São Paulo. Foi até hoje o trabalho mais importante que fiz na vida e o que mais me gratificou.
Isso faz mais de meio século e a OAF ainda existe, graças a batalhadores como o padre Júlio Lancelotti, sempre perseguido, nunca vencido. Lembrei-me dele e destes meus tempos de colégio de padre ao terminar de ler o caudaloso noticiário publicado pelos três principais jornais brasileiros sobre a visita do papa Francisco a Aparecida na quarta-feira (24/7).
Todos registraram na íntegra os pronunciamentos do papa e a presença de mais de 200 mil pessoas na cidade, que em sua grande maioria passaram ao relento a madrugada mais fria dos últimos 50 anos, mas apenas a Folha deu destaque ao drama dos peregrinos, dando manchete de página: “Em Aparecida, frio e chuva levam mais de cem fiéis ao hospital”.
“No total, 106 fiéis foram socorridos no hospital militar no local. O Corpo de Bombeiros fez 60 atendimentos. A maioria dos casos era de hipotermia, por conta do frio, e mal súbito _ algumas pessoas ficaram 24 horas sem comer para não perder lugar na fila para entrar na basílica. (…) O quadro piorou no início da manhã, quando a chuva intermitente na madrugada engrossou. Muitos desmaiaram diante da basílica”, relatam os repórteres Diógenes Campanha, Daniela Lima e Fernanda Reis.
“Chuva intensa”
Solidariedade, fraternidade, amor aos mais pobres, foram algumas das palavras mais ouvidas nas manifestações de Francisco e dos religiosos que acompanham sua visita. Tudo muito bom, muito bonito, mas entre a retórica dos sermões e a prática da vida real, a visita do Papa a Aparecida revelou que ainda existe um abismo enorme, apesar de toda a sua simpatia e boa vontade.
Claro que o Papa Francisco, hospedado na sede da Arquidiocese do Rio de Janeiro, no alto do Morro do Sumaré, não poderia saber o que se passava nas ruas de Aparecida naquela madrugada, mas será que todas as centenas de bispos, padres, monsenhores, seminaristas, voluntários e funcionários de diferentes governos, sem falar nos católicos que vivem na cidade, não foram capazes de enxergar este sofrimento do povo e providenciar pelo menos sopa quente, café e cobertores para quem padecia no frio, ou um abrigo para os idosos e as crianças?
Segundo o ministro da Defesa, Celso Amorim, em informação publicada pelo “Estadão”, há 14.306 militares envolvidos na Jornada Mundial da Juventude em função da agenda do Papa no Rio. Só em Aparecida, havia outros 4.040. Será que nenhum deles foi capaz de tomar uma providência antes que mais de cem peregrinos fossem hospitalizados por fome ou frio, ainda mais numa região, o Vale do Paraíba, no meio do caminho entre o Rio e São Paulo, onde proliferam unidades militares?
Como tantos outros católicos, também fiquei encantado com os gestos, os beijos, abraços e palavras de carinho do carismático papa argentino, mas na vida real, entre tantas louvações de entusiasmo e “babações de ovo” cheias de esperança reproduzidas pelos jornalões, sou obrigado a concordar com o que escreveu meu velho amigo Clóvis Rossi em sua coluna desta quinta-feira na Folha, com o título “O papa, sinais e substância”:
“Acho que é cedo para esta beatificação em vida do papa. Tudo bem que ele tenha emitido sinais simpáticos. Tudo bem que símbolos são importantes. Mas vamos combinar que símbolos só se tornam de fato decisivos quando acompanhados de substância. E vamos combinar também que, em matéria de substância, o papa ainda deve tudo. Nem se diga que a pregação de uma igreja ao lado dos pobres já é substância. Desde pelo menos a Rerum Novarum de Leão 13, velha de 122 anos, a retórica da igreja tem forte retórica social”.
Rossi disse tudo, mas poderia acrescentar que neste ponto a Igreja Católica e a imprensa brasileira se equivalem no distanciamento obsequioso que mantém da vida real do povo. O carioca O Globo, que vem dedicando um caderno diário de dez páginas à visita desde a chegada do papa, reservou apenas sete linhas de jornal para falar dos fiéis que ficaram do lado de fora da basílica, assim mesmo citando o arcebispo de Aparecida, Raymundo Damasceno:
“Para o cardeal, chamaram a atenção o carinho e a presença dos milhares de fiéis, que não desistiram de esperar pela passagem do papa apesar da chuva intensa”.
São poucos
Nas quatro páginas publicadas pelo Estadão, somente sobre a visita de Francisco a Aparecida, encontrei apenas uma pequena foto de Tiago Queiroz, com a legenda: “Chuva e frio. Fiéis acompanham missa fora da igreja”.
Ou os editores não se interessaram pelas matérias ou as dezenas de repórteres enviados à cidade fizeram como as autoridades da Igreja e dos governos: fecharam os olhos e esqueceram-se do povo congelado na sofrida e inesquecível madrugada de Aparecida. Os Júlio Lancelotti, infelizmente, ainda são muito poucos. Que papa Francisco os multiplique.
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Ricardo Kotscho é jornalista