Durante três décadas, associações profissionais, entidades de classe, movimentos sociais, partidos políticos, sindicatos, universidades, ativistas, educadores, estudantes, jornalistas, pesquisadores, profissionais liberais e a sociedade civil pressionaram os governos pós-ditadura para trazerem à tona todo o subterrâneo dos arquivos do regime militar. Pois agora, descoberta grande parte deste manancial documental, está na hora de implementarmos a campanha Liberdade Já para esta documentação porque mesmo a expressiva porção digitalizada é mantida em hibernação em seções governamentais, como se a liberação da mesma dependesse da benesse mecênica dos cérberos da história da ditadura militar. O Estado chamusca-se mais a cada dia por tentar segurar com as mãos o rabo de foguete dos direitos individual e coletivo à informação.
No volume 21 da revista Acervo, correspondente a julho/dezembro de 2008, os pesquisadores Vivien Ishaq e Pablo Franco exaltavam a importância do decreto 5.584, editado em 18 de novembro de 2005, pelo qual foram entregues ao Arquivo Nacional os documentos sobreviventes da Comissão Geral de Investigação (CGI), do Conselho de Segurança Nacional (CSN) e do Serviço Nacional de Informações (SNI), e da determinação em 2007 pela Casa Civil da Presidência da República da entrega ao Arquivo Nacional dos relatórios e fichários das divisões de informação implantadas nos ministérios civis, responsáveis por degredos, demissões, inquéritos e processos contra milhares de servidores públicos. O patrimônio recolhido ultrapassa a casa dos milhões e se formos esperar a digitalização de todo este tesouro o acesso público provavelmente se dará na próxima glaciação.
O trem da verdade
Há ao alcance de downloads material fundamental para a elucidação das lacunas existentes no tecido histórico brasileiro e o preenchimento dos talhos abertos pela ditadura militar em milhares de existências, cuja cicatrização depende da reconstituição documental em posse do sistema arquivístico estatal. Lunetas investigativas apontadas à seara do acervo do SNI avistaram, por exemplo, dossiês individuais do jornalista Alberto Dines, editor do Observatório da Imprensa, e do emérito professor de jornalismo Nilson Lage, da Universidade Federal de Santa Catarina, relatórios indicativos da corrupção nas instâncias superiores dos poderes executivo, legislativo e judiciário e extensas listas relativas a instituições de ensino superior, autarquias, estatais e meios de comunicação com os nomes das pessoas consideradas subversivas pela espionagem governamental.
Por isso é imperativo pressionar o Estado para a imediata disponibilização no portal do Arquivo Nacional, ou em outro específico, do material até agora digitalizado, com provimento em fluxo contínuo e acessibilidade fácil e direta, livre daqueles usuais impeditivos burocráticos e tecnológicos tão ao gosto do estrato patológico da administração pública dependente química do bizantino culto a formulários e da idolatria penitente do ser supraetéreo denominado sistema, bode expiatório da má vontade humana. Se tivemos momentos históricos propícios a movimentos específicos, como na campanha do “Petróleo é nosso” nas décadas de 1940/1950, no da Anistia ampla, geral e irrestrita no período castrense e das Diretas Já em 1984, faz-se premente hoje o Liberdade Já para a documentação do acervo do regime militar porque às vésperas dos 50 anos do golpe de 1964 desponta no horizonte da estação História o pontual e insistente trem da verdade e o atropelamento da burocracia será inevitável.
******
Álvaro Nunes Larangeira é jornalista, pesquisador e professor do mestrado e doutorado em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Desenvolve o projeto de pesquisa A imprensa em 1964,com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)