Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A origem dos homens de preto

O estudo da origem da tática de protesto e resistência urbana à violência e ao autoritarismo estatal conhecida como “Black Bloc” é de suma importância para a compreensão do papel desses homens e mulheres de preto que protegem manifestantes em protestos desde os anos de 1980. Eles não surgiram a partir das manifestações antiglobalização em 1999, em Seattle, ou das de Gênova, um ano antes. Sua origem é bem mais antiga e remonta aos autonomistas europeus do final dos anos de 1960, que queriam libertar-se da “ganância, violência e da imensa e inumana burocracia estatal”. Só através do estudo de sua história poderemos entender por que esses ativistas de preto protegem as manifestações da violência do Estado.

Na edição 751deste Observatório foi explicado quem são eles e o que fazem (ver “Por dentro da ‘tropa de choque’ dos protestos“). Mas como surgiram esses homens de preto na história recente das manifestações políticas de base popular? De onde vieram? Com que autoridade eles tornaram-se a segurança dos ativistas nas ruas? Ainda há muito a ser dito sobre a origem dos homens de preto que surpreenderam a polícia militar no Rio de Janeiro e em São Paulo.

O informativo multilíngue anarquista A-Infos (10/06/2001) publicou um artigo de Daniel Dylan Young no qual o autor explica que o Black Bloc tem um berço não anarquista: ele nasceu de um movimento da contracultura que se irradiou da Itália para Alemanha, Dinamarca, Holanda e outras partes da Europa. As manifestações iniciadas na Itália nos anos de 1970 apresentaram uma novidade: não tinham nenhuma relação com o Partido Comunista, a esquerda partidária ou o movimento sindical, que sempre procuraram sabotar aquele novo coletivo de estudantes independentes, donas de casa e trabalhadores de fábrica não sindicalizados. Era um movimento radical de transformação social de gente não organizada e foi tratado com indiferença e malícia pela esquerda tradicional.

“Alternativa à família nuclear patriarcal”

No final da década, a repressão estatal aos movimentos de protesto em geral acabou por provocar uma radicalização da esquerda italiana, que redundou na morte de Aldo Moro. O fato sangrento deflagrou mais repressão estatal e o fim da possibilidade da continuação de qualquer movimento da contracultura radical no país. Mas aquela movimentação não havia passado despercebida da juventude alemã, que iria vestir o negro em protestos dez anos depois da derrota dos autonomistas italianos.

No país germânico, a juventude alemã enfrentava um problema na década de 1980: haviam ficado de fora do arranjo antirrecessão que protegia trabalhadores, desempregados sindicalizados, o empresariado e o sistema financeiro. As políticas sociais alemãs, tão elogiadas mundo afora, não foram suficientes para atender os problemas da juventude. O sistema de bem-estar social havia amparado bem a sociedade alemã durante a recessão da década, mas não havia empregos ou horizontes de independência financeira para o jovem alemão, que não conseguia sair da casa de seus pais.

Nessa década, a então Berlim Ocidental apresentava um cenário urbano comum a muitos países desenvolvidos: a decadência no centro das cidades e a fuga da burguesia para os subúrbios. Muitos edifícios acabaram abandonados em áreas centrais, e terminaram ocupados por jovens que “perseguiam uma alternativa para a família nuclear patriarcal”, comentou Dylan Young. Comunidades autônomas começaram a aparecer na capital, Hamburgo e outras cidades. Eram coletivos vibrantes, cheios de ideais novas e possibilidades. O autor oferece-nos uma boa visão das expectativas da época:

“A pedra fundamental dessas comunidades eram a vida comunal e criação de centros sociais radicais: lojas de informática, livrarias, cafeterias, salas de encontros, bares, salas de concerto, galerias de arte e outros espaços multiuso onde a política de base popular, cultura artística e social seriam desenvolvidas como alternativa à vida em família nuclear, sonhos de TV e a cultura pop produzida para as massas.”

Proteção contra a ferocidade policial

O Black Bloc nasceu envolvido numa atmosfera de violência e luta. As invasões de imóveis desocupados continuavam em várias partes da Alemanha. O Estado alemão, por sua vez, tratava a situação de dois modos: tentava cooptar parte dos autonomistas e oferecia a possibilidade de legalização para alguns, enquanto prosseguia com os despejos da maioria dos invasores. Cada despejo era seguido de uma nova ocupação, conta Dylan Young. O confronto adentrou a década de 1980 em fogo.

A nova forma de militância e protesto emergiu e chamou a atenção da imprensa depois que a polícia alemã atacou brutalmente militantes ambientalistas na municipalidade de Gorleben, na Baixa Saxônia, que criaram (30/04/1980) a “República livre de Wendland“: um grupo de cinco mil ativistas pacíficos que decidiu ocupar uma parte queimada de floresta para “dramatizar suas posições” contra a construção de um depósito permanente de lixo nuclear no local. No dia 4 de julho de 1980, a polícia e guardas federais de fronteira impuseram um rude final à curta experiência dos ambientalistas (fonte: GHDI).

A brutalidade da repressão contra um movimento pacífico desde seu início chocou os autonomistas (ou autonomen), que a partir daí conceberam a tática Black Bloc. Afinal, se a repressão foi tão massacrante contra pacíficos ambientalistas, o que seria de anarquistas radicais invasores de prédios? A ideia da tática surgiu da solidariedade entre movimentos distintos, mas igualmente radicais e voltados para a transformação da sociedade. Por isso até hoje a formação é empregada por diferentes movimentos. Pela partilha de agruras similares registradas na história, o Black Bloc protege manifestantes e protestos da ferocidade policial. Mesmo quando não são anarquistas. Dylan Young, o articulista anarquista, explicou que o “Black Bloc é uma forma de militância que rompe a problemática dicotomia entre ativismo não-violento praticado pela população e o terrorismo, guerrilha e sabotagem da elite”.

Iniciativas de ativismo de mídia

O look inicial Black Bloc na Alemanha incluía capacete de motociclista preto, máscara de esqui, roupa (preta) acolchoada e botas com bico de aço. Aqueles que podiam levavam escudos e cassetetes. A formação Black Bloc conseguiu trazer força e solidariedade para os movimentos radicais na Europa, mas pouco a pouco alguns anarquistas entenderam que a tática já havia dado tudo o que poderia dar. Que a polícia já havia superado o choque inicial de ser recebida a cacetadas e coquetéis molotov. Talvez estes elementos tenham alguma razão. Na Alemanha, pelo menos, das ocupações levadas a efeito pelos autonomistas, de 165 edifícios em 1997 apenas três sobreviveram até o milênio, informou Dylan Young.

Após a reunificação alemã, os movimentos oriundos da contracultura começaram a entrar na mira dos crescentes movimentos neonazistas. O que lhes retirou tempo para pensar e desenvolver alternativas de uma sociedade menos autoritária que a nossa. A ascensão da extrema-direita radical na Alemanha impôs um recuo inesperado ao movimento anarquista e a prática da tática Black Bloc na Europa. Nos Estados Unidos, desde os protestos de 1999 em Seattle, o os homens de preto tem tido presença constante nas manifestações populares no país.

As redes sociais e novas realidades em outros continentes ofereceriam novos “fronts” para esta forma de luta urbana solidária anos depois das primeiras críticas dos anarquistas ao Black Bloc feitas antes do desenvolvimento da web. O tempo de mobilização da população popular diminuiu muito e a organização virtual leva o planejamento da ação à sua execução em muito menos tempo. Além disso, novas iniciativas populares de ativismo de mídia em base tecnológica, como a Mídia Ninja, ajudam a criar um novo ambiente de luta e protestos urbanos em que o indivíduo desorganizado, que não faz parte de nenhum partido político ou sindicato, tenha sua voz e sua vez nas ruas.

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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento Urbano, consultor e tradutor