Na defensiva, admitindo erros. Quem diria, foi essa a imagem nos últimos dias de Pablo Capilé, o outrora inabalável líder do coletivo Fora do Eixo.
Até há pouco, só quem sabia do Fora do Eixo –originário de Cuiabá, surgido em festivais independentes, hoje tentando colar também em movimentos populares– era a turma pequena que acompanha o cenário musical. Já escrevi muito e criticamente sobre o FdE. Por anos, na “grande mídia’’, uma voz solitária.
Mas vieram as manifestações de junho, as transmissões da Mídia Ninja (ao vivo, de dentro das passeatas) e a revelação de que os ninjas eram bancados pelo Fora do Eixo.
Seguiu-se um interesse natural, culminando no programa Roda Viva da semana retrasada. Os entrevistados foram Capilé e Bruno Torturra. Mesmo que boa parte dos entrevistadores não entendesse nada, fez-se uma pergunta crucial: de onde vem o dinheiro do FdE?
Assim, já de início, foi possível saber que a tropa do revolucionário, do antiestablishment, do inimigo do capitalismo Pablo Capilé vive de dinheiro de governos e de grandes corporações (por meio dos chamados “editais”). De qualquer governo (PT, PSDB etc.) e de qualquer corporação (Petrobras, Vale, Banco do Brasil, Itaú Cultural, o que pintar).
No geral, Capilé e Torturra saíram-se bem. Ironicamente, parece que o bom desempenho foi o estopim da reação. Como se algumas pessoas tivessem dito: “O Fora do Eixo vai sair por cima? Já me dei mal com eles, sei quem são. Vou contar tudo”. Uma tormenta se armou na internet.
Autopromoção
Começou com o depoimento da cineasta Beatriz Seigner, que se ligou a eles e sentiu-se enganada. Prosseguiu com o testemunho de Laís Bellini, ex-militante, apontando as semelhanças com uma seita. E aumentou com dezenas de outros desabafos.
Assim, foi possível esboçar o “modus operandi” do FdE.
a) são uma indústria de ganhar editais;
b) muito raramente pagam cachês;
c) operam por dentro da política partidária e do aparelho estatal, principalmente secretarias de Cultura (quase sempre petistas) e o próprio MinC;
e) são uma máquina de autodivulgação, inflando os números dos eventos que organizam, para conseguir mais visibilidade com patrocinadores e políticos;
f) sob o slogan “trabalho é vida”, jovens que vivem nas Casas Fora do Eixo dedicam-se de graça, sete dias por semana, a essa atividade publicitária, como “formigas felizes”.
A expressão “formigas felizes” não é de ninguém “de direita”, “rancoroso” ou “analógico”, como o FdE costuma desqualificar seus críticos. Está em um texto no Facebook da americana Shannon Garland, 31, doutoranda do Departamento de Música da ultraprestigiosa Universidade Columbia, em Nova York.
Ela estuda a música independente sul-americana. Fala ótimo português, entende o Brasil. Colaborou com o Fora do Eixo, chegando a passar dois dias por semana na casa de São Paulo. Em dezembro de 2012, publicou um artigo revelador: “The Space, the Gear, and Two Big Cans of Beer” (o espaço, o equipamento, e duas latonas de cerveja).
O texto antecipa a discussão de hoje. Aponta que o Fora do Eixo é uma organização voltada para a promoção de si própria. Os festivais, as bandas, tudo segundo plano. O importante é fazer coisas, qualquer coisa, para que depois as formigas felizes as promovam artificialmente na internet.
Luz do sol
Shannon Garland se diz decepcionada com a unanimidade pró-FdE no meio acadêmico, incluindo pesquisadores que admira. Lamenta que Hermano Vianna, Ronaldo Lemos e Oona Castro “elogiem tanto” a organização de Capilé.
Mas há pelo menos uma exceção. André da Fonseca, da Universidade Estadual de Londrina, apresenta o que chama de “visão crítica sem rancores ou deslumbres”. Escreveu um artigo valioso, “Vida Fora do Eixo”, sobre a dedicação obcecada dos militantes.
E um dos maiores especialistas do mundo em coletivos e cultura alternativa também quebra o consenso. É George Yúdice, da Universidade de Miami, profundo conhecedor do Brasil.
Em depoimento no “Face”, ele conta como apresentou o FdE a grupos da América Central e, quando percebeu, fora passado para trás –o FdE tinha tomado conta do dinheiro e pregado sua marca em eventos que nada tinham a ver com o coletivo brasileiro.
O juiz da Suprema Corte americana Louis Brandeis (1856-1941) dizia: “A luz do sol é o melhor desinfetante; a luz elétrica, o policial mais eficiente”. Figura das sombras, das manobras, imperador de um submundo paralelo, Pablo Capilé enfrenta pela primeira vez a exposição pública. O resultado tem sido devastador.
******
Álvaro Pereira Júnior é colunista da Folha de S.Paulo