Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Como interpretar a confissão da Globo?

Se a Globo confessar todos os pecados, o confessionário ficará ocupado por muitos anos.

Mas é de uma confissão específica que vamos tratar: o apoio ao golpe de 1964. A confissão, expressa numa nota publicada ontem [sábado, 31/8], teve ampla repercussão, como era de esperar.

A questão mais intrigante, para mim, é: o que a Globo pretendeu com isso? A única hipótese lógica que encontro é que ela quis fazer uma ação de marketing que limpe uma marca – ela própria – que, como os protestos de agora mais uma vez mostraram, sofre uma colossal rejeição dos brasileiros.

São remotas, remotíssimas na verdade, as chances de que isso melhore o drama da má reputação da Globo.

Primeiro porque o raciocínio usado no texto é manipulador. Palavras de Roberto Marinho, nos vinte anos do golpe, são evocadas para afirmar uma lorota histórica que eu imaginava que ninguém mais usaria, conhecidos os fatos reais: a de que foi o povo que exigiu a deposição de João Goulart.

Disse Roberto Marinho: “Os acontecimentos se iniciaram, como reconheceu o marechal Costa e Silva, ‘por exigência inelutável do povo brasileiro’. Sem povo, não haveria revolução, mas apenas um ‘pronunciamento’ ou ‘golpe’, com o qual não estaríamos solidários.”

Pobre povo brasileiro: além de ser objeto de uma predação econômica selvagem que transformaria o Brasil no campeão mundial de desigualdade social, ainda é responsabilizado por isso.

Não foi a CIA, não foi a direita, não foram generais reacionários, não foram barões da mídia como Roberto Marinho que deram o golpe do qual seriam grandes beneficiários. Foi o povo, vítima número 1 da quartelada.

Por esse ângulo, para voltarmos à confissão do Globo, Roberto Marinho estava, portanto, ao lado do povo, como um Zorro ou um Robin Hood.

Tese cínica

Nas reflexões de RM rememoradas na confissão, são destacados “os avanços econômicos obtidos naqueles vinte anos”.

Avanço para quem?

Para ele, certamente. Os militares lhe deram uma televisão que transformou a Globo de dona de um jornal de segunda categoria numa grande corporação.

Basicamente, foi uma troca: Marinho levou a tevê e, em troca, garantiu apoio à ditadura. No livro Dossiê Geisel, escrito à base de documentos pessoais de Geisel, essa troca aparece com clareza. Roberto Marinho não fazia nenhuma cerimônia em pedir mais e mais favores à ditadura lembrando o apoio que dava a ela.

Para o “povo”, o golpe foi uma tragédia econômica. Os trabalhadores perderam direitos trabalhistas como a estabilidade, e foram proibidos – não raro a balas – de fazer greve para se defender na relação desigual com as empresas.

Disso resultou uma brutal concentração de renda. A fatia do bolo nacional do povo foi minguando, enquanto homens como Roberto Marinho acumulavam uma fortuna pessoal que os levaria, ou a seus herdeiros, às listas de bilionários feitas pela respeitada revista americana Forbes.

A falácia empregada na época, uma criação do homem forte da economia, Delfim Netto, era que o bolo tinha antes que crescer para depois ser distribuído.

Impedidos de responder com greves, os trabalhadores tinham, para usar a grande expressão de Noam Chomsky, a “liberdade de consentir” naquela tese desonesta, cínica e responsável pela favelização do Brasil.

Fé cega

Se realmente quiser melhorar sua imagem, a Globo terá mais sucesso com ações concretas.

Uma delas, que poderia ser a primeira, é pagar o que deve à Receita Federal depois de ter sido flagrada numa fraude fiscal na compra dos direitos da Copa de 2002.

O problema é que, para isso, não bastam palavras. É preciso colocar dinheiro: 1 bilhão de reais em valores atuais.

E quem acredita que a Globo põe a mão no bolso, mesmo em situações escandalosamente claras como aquela, acredita em tudo, como disse Wellington.

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Paulo Nogueira é jornalista baseado em Londres, fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo