Da seção “Jornal de Debates”, contida na edição 761 do Observatório da Imprensa, encontra-se o texto do professor Dalmo de Abreu Dallari sobre a rixa dos ministros Barbosa e Lewandowski (ver “Agressão ao Supremo Tribunal Federal”). O autor, jurista emérito da – quiçá, melhor – faculdade de Direito, cientista indiscutível no ramo do direito constitucional – eu (como tantos outros advogados) estudei o livro dele –, não teria aberto argumentos para respostas ao debate. Tanto como no subtítulo do artigo publicado aqui – “Modelo e exemplo” –, quanto no famoso dito de Schopenhauer [in Parerga e Paraleponema, 2ª parte – “A Arte de Escrever”; organização, prefácio, tradução e notas de Pedro Süssekind – Porto Alegre: LP&M, 2008. Página 15], Dallari nos fornece a regra e o exemplo, ao mesmo tempo, de como deveria funcionar a instituição Supremo Tribunal Federal. Mas poderia haver uma moderação do sentido da opinião, para “Feitos & Desfeitas”.
O autor apresenta e justifica, basicamente, (a) o destempero da linguagem do ministro presidente da corte constitucional e (b) as consequências de cunho institucional. Segundo o autor, o ministro Barbosa jamais deveria referir-se, principalmente aos seus pares, em especial ao ministro Lewandowski, via o termo “chicana”. Por “chicana”, poder-se-ia entender astúcia judicial, embora aqui denote trapaçaria, enredo, cavilação. O autor aponta que o termo pejorativo jamais deve ser utilizado para impedir qualquer um de solicitar a entrega da prestação jurisdicional; i.e., de pedir a ajuda do corpo judiciário contra a prepotência – e cita o jurista italiano Calamandrei. O evento seria mais suscetível de condenação ainda quando aquele que tivesse buscado o direito tivesse sido um representante do próprio tribunal.
O texto prossegue ilustrando exemplos de notas de repúdio ao destempero do linguajar e, por conseguinte, do comportamento, do ministro Joaquim Barbosa, manifestados por associações e organizações que operam o direito. A relação causa e efeito é nítida: o destempero vocabular remete a um comportamento prepotente. Ao ser acusado de tal postura, o ministro presidente Barbosa, pelo fato de ocupar um cargo público dos mais relevantes, teria maculado a instituição que compõe a organização tríplice dos poderes.
Uma palavra que criou uma realidade
O autor conclui o texto manifestando que o linguajar por meio do qual se constata a prepotência do ministro Barbosa teria sido resultado natural de sua atribuição ao cargo de presidente do tribunal constitucional. E finaliza conclamando a imprensa a não deixar incólume este episódio, no que tange às próprias responsabilidades política, jurídica e social. Enfim, todas as abordagens consideradas: os argumentos são sólidos, é impecável a contribuição notória, tanto como a mensagem, imprescindível à sociedade.
A moderação respeitosa e complementar à opinião do jurista que se pretende veicular aqui aborda exatamente a propriedade vocabular. É sabido, entre os operadores do direito, que se referir ou acusar um colega de “fazer chicana” no processo judicial soa como um insulto impronunciável. Poder-se-ia constatar, inclusive, que ao usar este termo vocabular, o ministro Barbosa teria dado (talvez, mais) um indício de que se comportaria de forma prepotente, indiferente aos pareceres que seriam contrários ao seu ponto de vista técnico. Mas, se por um lado, por mais que a tempestade criada em torno do fato se revele desejável em uma sociedade democrática; por outro, há de se ressaltar as particularidades deste caso.
Não se discute a impropriedade vocabular do ministro Barbosa. Mas deve constar da análise e do mérito a circunstância em que tal “palavrão”, amaldiçoado, fora gravado nos trâmites do julgamento. O fato gerador de toda a discussão foi o esclarecimento (recursos de embargos) da sentença requerido pelos advogados do réu bispo Rodrigues. O recurso processual em pauta visava apontar uma suposta contradição nos termos da condenação. O artifício do réu, embora legítimo processualmente, já houvera sido rechaçado pelos membros da corte constitucional. Na edição 760 deste Observatório abordei as tecnicalidades do direito neste caso (ver “O lead é o que importa”).
O máximo de informação
Ainda que se condene a propriedade vocabular do ministro Barbosa – e, adicionalmente, os indícios que revelariam seu proceder prepotente –, para o assunto específico nada haveria a ser esclarecido ao recurso do réu. O resultado do posicionamento do tribunal constitucional vale conforme a maioria dos votos dos seus integrantes. Condena-se o dito do ministro Barbosa? Sim. Alteram-se os efeitos do caso neste particular? Não.
Ainda se sabe, por muitos, que o ministro Barbosa não seria exatamente um jurista, acadêmico, ou professor de renome. Embora a referência a um colega com o termo “chicana” seja condenável à boa ética dos operadores do direito, ao observar o cotidiano do – diga-se – “baixo clero” jurídico, nota-se que o vocábulo não possui a intensidade de quando é revelado nas cortes superiores. Na primeira instância de julgamento, na base da pirâmide jurídica, poder-se-ia supor que uma referência aqui, outra ali, ao colega adversário, de estar fazendo “chicana” no processo, não causaria a mesma repercussão do fato que se discute. É evidente que o ministro Barbosa deveria se ater ao que diz pelo fato de representar a corte constitucional. É oportuno que qualquer deslize vocabular seja denunciado. É desejável que a sociedade entenda todos os meandros e caixas-pretas por meio das quais funciona o poder judiciário. Porém, entender os fatos significa oferecer à sociedade a possibilidade de conhecer todos os detalhes e formar seu convencimento de valores com o máximo de informação possível.
“Certas coisas não convencem”
Ainda que uns digam que a mídia tenha “endeusado” o ministro Barbosa, direcionando o viés da informação; ou, de outra forma, ainda que uns digam que a mídia tenha “demonizado” o poder judiciário, abordando via determinada forma o sentido dos fatos, importa saber a mudança de paradigmas e precedentes judiciais, sob cujos resultados práticos nossa sociedade passa a se organizar. A orientação ideológica não deveria pautar resultados judiciais, tampouco justificá-los. Alguns reclamam do julgamento do mensalão, argumentando que à época da privatização “tucana” teriam ocorridos acontecimentos piores do que aqueles que hoje se discute. O fato de não ter tomado a medida correta no passado não justifica não ter que se fazer a coisa certa hoje.
O professor Dallari, ao argumentar que a Constituição teria sido violada – e fundamentar, sistematicamente, que não haveria foro privilegiado e, portanto, os réus do processo do mensalão não deveriam se submeter ao resultado de uma única instância, da determinação do Supremo Tribunal Federal, indica, oportunamente, uma questão relevante e controversa sob o ponto de vista jurídico e constitucional.
Mesmo com todos os equívocos e acertos, o processo do mensalão revelou – não um ministro presidente – mas sim, uma mudança de atitude da corte suprema que, embora alguns julguem como um retrocesso, enquanto outros a apoiam afortunadamente, hoje, o dito popular de que haveria “batom na cueca” serve como evidência e fundamento de uma condenação judicial. Como na simplificação vocabular do ministro presidente Barbosa, para as questões votadas e decididas, por maioria, entre todos os membros integrantes da corte suprema – “certas coisas não convencem”.
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Eduardo Ribeiro Toledo é advogado e escritor