Na seção intitulada “Placar Literário” da Bienal Internacional do Livro no Rio de Janeiro, repercutiram ao longo de alguns dias algumas das críticas da imprensa e de comentaristas esparsos à transformação do popular estádio do Maracanã em um local elitista do espetáculo futebolístico. Esta mesma ótica crítica pode ser aplicada aos slogans contra a Copa do Mundo (coisa inédita na vida brasileira) que apareceram durante algumas das ruidosas manifestações de rua no Rio.
Convidado a participar de um dos dias do “Placar” (coordenado pelo jornalista João Máximo) para um diálogo com o professor Ronaldo Helal (especialista em comunicação esportiva), tive a oportunidade de narrar e refletir sobre o que me parece ser, no futebol, um aspecto significativo das transformações ditas “modernizadoras” na urbanidade brasileira.
Narração e especulação
Eu estava em Dublin, capital da Irlanda do Sul, em congresso acadêmico, no dia do jogo entre Brasil e Espanha pela Copa das Confederações, em junho passado. O irlandês é uma gente singular em matéria de cordialidade: é de uma gentileza bem-humorada e contagiante, que me disseram estar inscrita na tradição nacional. No dia imediato ao jogo, um motorista de táxi me disse entusiasmado que tinha visto o “velho Brasil” jogar.
A frase me intrigou, mas só por um segundo. Ela fazia referência ao modo como, na imaginação dele, deveria ser sempre a seleção de futebol brasileira: hábil e criativa. O gol de Fred deitado na grama foi, para ele, um improviso arrebatador; o de Neymar, preciso como a lapidação de uma joia. Em seguida, a propósito daquele “velho Brasil”, o taxista me perguntou algo como “o que é que faz do Brasil um Brasil-em-campo?”
Eu entendi assim a pergunta: qual a singularidade do futebol brasileiro?
Eu não soube responder na hora, mas arrisco agora uma hipótese, chamando a atenção para três noções: pátria, nação e povo. A minha visão do futebol está na associação e também na desassociação desses três termos.
Primeiro, a questão da pátria. É célebre a frase de Nelson Rodrigues: “O futebol é a pátria de chuteiras”. Pátria é o país onde se nasce, é o berço nacional de alguém ou mesmo de alguma coisa. A frase de Nelson circulou bastante durante o regime militar porque “pátria” conota também o poder territorial do Estado e gera a ideologia, em geral, autoritária, direitista, do nacionalismo voltado para dentro ou “patriotismo”.
Nação implica uma comunidade (uma “comunidade imaginada”, segundo Benedict Andersen) de indivíduos que, em geral, falam a mesma língua e partilham o mesmo sentimento com relação ao território ou à pátria.
Povo, por outro lado, é o conjunto de cidadãos que ocupa um espaço nacional. Pode ser confundido com população, mas não é a mesma coisa. Povo é de fato um conceito político. Mais precisamente: povo é um princípio, e a ideologia do povo é o conjunto sistemático das significações de todas as espécies deduzidas desse princípio.
Por que é necessário fazer este preâmbulo?
Primeiro, para frisar que o Império deu ao país brasileiro Estado e Nação, mas não deu povo. O Estado-Nação ficou de um lado, a sociedade popular do outro. Desde então, o povo brasileiro é uma ideia em andamento, um work in progress. O povo é o grande enigma e o grande tema do pensamento brasileiro: os explicadores gerais do Brasil, os artistas e os escritores do modernismo, o cinema novo, os momentos fortes da canção nacional – tudo isso é o empenho de formulação da ideia de povo brasileiro.
Pois bem, a nossa hipótese é que a originalidade do futebol brasileiro consiste em sua estreita associação ao processo de formulação e constituição do povo nacional. Esta associação é uma constante na história moderna do Brasil. Durante a recente Copa das Confederações (junho de 2013), a propósito do gol notável de Neymar no jogo contra o México, o compositor e colunista Caetano Veloso comentou: “O drible que ele deu nos adversários antes de passar, com precisão absoluta, a bola para Jô golear, foi tudo o que desejamos que seja qualquer coisa produzida por brasileiros”.
Movimento de devoração
Essa fusão do futebol com o espírito do povo não ocorreu aqui com nenhuma outra modalidade esportiva. Partindo das fissuras existentes em regras esportivas que ainda não eram muito bem formuladas, e também da pequena importância das diferenças físicas (tamanho, força etc.) no jogo, o futebol saiu do âmbito fechado dos clubes de elite e se espalhou pela várzea. Passou a ser praticado em fundo de quintal, na rua, onde quer que houvesse espaço baldio e uma bola, que poderia até não ser de couro, mas que rolasse.
Jogo, bem sabemos, é uma atividade destinada ao entretenimento e governada por regras bem conhecida por seus participantes. São numerosos os tipos de jogos: futebol, danças, cartas, sorteios, surfe e tantos outros, assim como todos aqueles que implicam violência, a exemplo do boxe, das artes marciais etc. São às vezes tênues as fronteiras entre esporte jogo, mas é sempre possível estabelecer uma distinção entre um e outro, avaliando-se a dimensão preponderante.
O futebol é jogo de estimulação à “formatividade” do corpo, isto é, a levar o corpo a fazer alguma coisa e, ao mesmo tempo, inventar. Inventar, por exemplo, uma corporeidade, em que se possa vislumbrar alguma coisa da identidade nacional sonhada. Algum quantum de energia da pulsão identitária do corpo nacional investiu o futebol no transe de seu nascimento no Brasil. De fato, o jogo pode ter uma forte função civilizatória, como atesta René Caillois: “Os impérios, as instituições desaparecem, mas os jogos permanecem, com as mesmas regras, às vezes com os mesmos acessórios”. Deste modo, não lhe parece absurdo tentar o diagnóstico de uma civilização a partir dos jogos que aí se desenvolvem particularmente: “Se os jogos são fatores e imagens de cultura, segue-se que, numa certa medida, uma civilização e, no interior de uma civilização, uma época pode ser caracterizada por seus jogos”.
O futebol é uma espécie de atractor (ou simplesmente atrator), nome dado pelos matemáticos ao conjunto de comportamentos característicos para o qual evolui um sistema dinâmico independentemente do ponto de partida. Um de suas modalidades é o “estranho atractor”, em que o sistema não é aleatório nem oscilatório, nem fixo, mas uma flutuação contínua e caótica de estados. O futebol parece-nos um estranho atrator de pontos latentes, mas atuantes na constituição do povo nacional. Por isso, a manha corporal, o jeito, a improvisação, a alegria nos jogos e na torcida.
Muita energia é gerada quando alguma coisa está em vias de nascimento – um movimento social, uma criação artística, uma relação amorosa etc. O status nascendi do futebol no Brasil se dá em meio à implantação por via prussiana, de cima para baixo, da República, da nossa precária Primeira República, feita por elites sem povo. Na capital da República, Rio de Janeiro, o que de forte havia nesse momento do ponto de vista existencial consistia na hibridização ou de formas culturais diferentes. No início dos anos 1930, a profissionalização do futebol obriga o jogo a sair de seu encapsulamento clubístico e a incorporar negros e mestiços.
Tal é a energia do “velho Brasil” implícita na frase do taxista irlandês. Nesse movimento de devoração do outro ou da diferença, o futebol foi-se tornando aqui uma forma lúdica tão nossa quanto se tornou a língua portuguesa, a forma dita língua brasileira advogada por José de Alencar e universalizada por Machado de Assis.
Voo das abelhas
No movimento de nascer, o futebol se instala aqui como uma maneira, mais do que uma forma estabilizada pelas regras. Na história das artes europeias, maneira é a figura de um estilo de época, o maneirismo (entre 1520 e 1680), que tem fronteiras imprecisas com o estilo barroco. O barroco exprimia, de modo exuberante, o triunfo do indivíduo sobre a natureza e seu meio. O maneirismo exprimia uma posição em nada afirmativa, e sim crítica, dilacerada, paradoxal, uma estética do momento mais radical. Era um estilo de distorção das formas suntuosas do barroco correspondentes à ideia de um “espetáculo total”, seus postulados eram espantar e maravilhar.
Dizer que o futebol foi aqui uma “maneira” é dizer que aqui se distorceu a forma inglesa do esporte, isto é, a racionalização universalista do jogo corporal. De fato, toda forma tem um valor que pode exprimir-se por meio de uma moralidade. Isto acontece nas artes, mas também nos jogos, que assim se universalizam como “esportes”.
O futebol brasileiro sempre foi muito mais do que um esporte. Foi um lugar de convergência, um “atrator”, com um fundo cênico – não exatamente teatral, mas “ludocênico”. Quer dizer, o jogo aqui interpreta inconscientemente processos identitários em que transparece o imaginário social do ser brasileiro definido como ser improvisador, criativo, furador de barreiras – ser alguma coisa além do que manda a razão instrumental ou patriótica. Nessa ludocena, não apenas o jogador é ator, mas também o técnico (basta lembrar João Saldanha), o massagista, o comentarista e a torcida.
Um estádio como o Maracanã poderia ser concebido como “teatro” de todo esse enredo. Agora, quando é transformado em “Teatro Municipal”, favorecendo uma arquitetura do puro espetáculo (campo mínimo para a bola rápida e para efeitos televisivos), cobrando entradas extorsivas suportáveis apenas por setores altos da classe média, a consequência imediata é a expulsão da torcida, a expulsão do povo do “velho Brasil”. Claro, isso provavelmente torna o lugar mais apetecível para as famílias (que dali fugiam assustadas com a violência). Mas, por outro lado, é como se o novo espaço se alimente nostalgicamente do pré-futebol brasileiro, quando ainda era muito inglês, sem negro à vista.
Não se pode esquecer que o futebol também se prestou no Brasil a ser “pátria de chuteiras” e foi assim que ajudou a propulsionar a tecnologia das telecomunicações, representada na figura da Embratel durante o regime militar. É que, na década de 1970, a transmissão dos jogos de futebol pela televisão (a utilização do satélite e da rede de microondas era por demais cara para as empresas separadas) costumava ser anunciada como “via Embratel” e, de lambuja, como mais um milagre tecnológico do regime. O que garantia a transmissão dos jogos era “um balão metalizado de grandes dimensões” colocado em órbita estacionária sobre a região da linha do Equador, com o nome de “Futebol”.
Numa sociedade cada vez mais convidada a jogar pela tecnologia eletrônica, é educativo ter em mente que o verdadeiro jogo desafia sempre a rigidez universalista das normas. Veja o boxe: suas regras são universais e devem ser seguidas ao pé da letra pelos praticantes, sob pena de se recair na agressão pessoal. Há os mais fortes e os mais fracos, os mais hábeis e os menos hábeis, mas as regras supostamente não mudam. De repente, porém, há alguém como Muhammed Ali que lutava com sua “maneira”, isto é, bailando, tentando brincar com o adversário e com o público ou como ele mesmo dizia “picando como uma abelha”.
Talvez seja isso o futebol do “velho Brasil”: um voo de abelhas, maravilhando e espantando, com promessa de muito mel.
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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro