A matéria em que o Globo assume o apoio dado à ditadura civil-militar que comandou o Brasil durante 21 anos esbanja imprecisão e cinismo como parte de uma estratégia que visa recuperar alguma legitimidade para o seu grupo de mídia, tão desgastado nas manifestações que têm tomado conta do país. Lançando mão de uma artimanha textual-argumentativa que deixa a descrição e discussão dos fatos para segundo plano, o texto acaba explicitando uma contradição: o apoio à ditadura agora revelado como confissão põe em xeque a concepção de objetividade e imparcialidade que o próprio Globo utiliza para classificar o que pode ou não ser chamado de jornalismo e, com isso, defender a definição estreita de liberdade de imprensa que até hoje tem protegido a grande mídia no Brasil.
Vamos por partes: se a imparcialidade e a isenção são valores próprios ao jornalismo, como anuncia a grande imprensa, como é possível que um jornal “apoie” um regime ou governo? Tomemos a contradição constitutiva do discurso do próprio Globo. No seu Manual de Redação e Estilo, organizado e editado por Luiz Garcia, o jornal diz que “mesmo sabendo que a isenção absoluta é impossível, é dever do jornalista tentar, o tempo todo, ser absolutamente isento”. Aqui, como se vê, admite-se que a imparcialidade é um valor inalcançável, mas não só se reafirma essa busca como necessária, como se atribuem as dificuldades à subjetividade do jornalista – o que sair dos eixos, é responsabilidade individual. Mas o parágrafo seguinte do Manual corrige essa impressão, afirmando que “quase todo veículo de informação segue uma linha editorial”. Aqui parece que nos aproximamos do fenômeno que agora, nessa confissão tardia e oportunista, o Globo chama de “apoio editorial”. Vejamos: linha editorial é, de acordo com o Manual, um “conjunto de definições que [o veículo] defende em seus editoriais”. Reconhecendo que “é praticamente inevitável que ela [a linha editorial] tenha alguma influência no tratamento das notícias”, o Manual aconselha: “O jornal, ao reconhecer essa contingência, não pode se acomodar a ela: deve zelar para que a influência seja mínima, idealmente nenhuma, repelindo a fraude que se expressa na deturpação ou na ocultação dos fatos”.
Visões de mundo e interesses específicos
Tendo como base todo esse arsenal de análises rasas, que tentam capturar o direito de definir o que é e o que não é jornalismo, salta aos olhos que a confissão tardia do Globo não mencione “como” se materializou o que eles classificam como “apoio editorial” ou posicionamento. O Globo escrevia editoriais e publicava artigos opinativos a favor da ditadura? Sim, todos sabemos. Mas esse apoio se traduziu, principalmente, no que o próprio Manual do jornal chama de “fraude”, “deturpação” e “ocultação dos fatos”.
Se é assim, um verdadeiro mea-culpa deveria não apenas dar a essa confissão vazia a concretude de dados que o jornalismo exige, como se desculpar por 21 anos de um antijornalismo. Deveria assumir o erro de ter ferido de morte aquilo que eles definem como jornalismo, e não simplesmente por uma escolha errada, avaliação equivocada influenciada (e desculpada) pelo contexto histórico. Que o Globo continue na sua recente culpa cristã e peça desculpas não por ter cometido um erro de avaliação, mas por ter praticado um jornalismo sem ética durante mais de duas décadas. Ou então, que aplique seu surto de honestidade ao presente e declare, explicitamente, os posicionamentos políticos-partidários-eleitorais que ele continua assumindo. Que deixe de se autoproclamar o bastião da democracia e admita que não se trata da distante influência de uma linha editorial entre outras, mas da defesa de visões de mundo específicas que atendem a interesses também específicos.
Regulação do erro
Mas o fato é que o mea-culpa do Globo abre caminho para o óbvio questionamento da concepção de liberdade de imprensa que o jornal tanto preza. Vejamos mais uma vez o que diz o seu Manual de Redação: “É a própria imprensa que, por sentimento de dever e interesse próprio (uma vez que desapareceria sem a estima e o respeito da coletividade), escolhe suas regras específicas de conduta. Vinda de fora, qualquer outra forma de limitação é censura e agride a liberdade de imprensa.” Exercitemos um olhar mais condescendente, tolerante com o argumento de que a defesa da ditadura deveu-se a um erro de avaliação.
Se é assim, perguntamos: como podemos confiar nas escolhas éticas e na autorregulação de um jornal que cometeu um erro tão sério? Se o apoio à ditadura foi um erro de avaliação – simples assim –, o que nos garante que jornais como o Globo, a Folha e o Estadão são capazes de avaliar corretamente as necessidades e demandas da sociedade? Quem saberá dizer se o “contexto histórico” não tem levado esses jornais a “posicionamentos” frequentemente equivocados, que podem gerar consequências como 21 anos de prisões, torturas e mortes? Se o Globo quer agora se desculpar alegando que “errar é humano”, precisa reconhecer que os seus erros vão além do seu próprio umbigo, têm consequências coletivas importantes e, portanto, precisam ser prevenidos e punidos pela sociedade por eles atingida. Eis outra armadilha da qual o mea-culpa do Globo não escapou: em contradição com o que diz no seu Manual e em editoriais diversos, a fragilidade e “humanidade” das instituições midiáticas que o texto insinua só fortalece a necessidade de regulação pública do conteúdo informacional e da postura ética da mídia comercial.
O lead incompleto
O mea-culpa do Globo foi publicado em duas páginas do jornal de domingo, na forma de matéria jornalística. Para seguir o Manual de Redação deste e de praticamente todos os grandes jornais brasileiros, deveria se guiar pelo famoso lead, com informações que respondessem a seis perguntas essenciais: quem? O quê? Como? Onde? Quando? Por quê? Mas, mesmo numa confissão atrasada quase 30 anos, algumas dessas perguntas ficaram sem resposta.
Vejamos: o personagem é o próprio Globo; a ação, o reconhecimento do que todo mundo já sabia: o “apoio editorial” à ditadura; o período são os 21 anos da ditadura civil-militar (e, subentendido, as quase três décadas de silêncio sobre o assunto após a democratização); o local, evidentemente, é o Brasil. Faltou, como se pode observar, responder o “como” e o “por quê”. Já tivemos oportunidade de comentar acima o fato de a confissão não mencionar a forma como esse apoio se deu, protegendo o jornal da vergonhosa (e impensável) autoacusação de praticar o oposto do jornalismo que prega (e falsamente impõe a todos como modelo). Mas vale perceber que faltou também o por quê. Faltou, sem mais delongas, admitir que, mais do que um erro de avaliação, o apoio à ditadura foi um vantajoso “acordo” político que fez com que o Globo de então se tornasse parte das atuais Organizações Globo, maior grupo de mídia do Brasil e um dos maiores do mundo. Faltaram os números que mostram o crescimento desse grupo empresarial durante os 21 anos do erro que hoje o jornal admite. Faltaram os dados sobre os benefícios e mesmo privilégios que o negócio do sr. Roberto Marinho e família recebeu enquanto o país afundava na mais dura repressão. Faltou, portanto, dar subsídios para o leitor concluir que esse grupo empresarial é um dos grandes beneficiários da democracia cooptada que o Brasil vive hoje. É por isso que, diferente do que diz o texto que abre a confissão, quando, nas manifestações, aquele conhecido coro acusava a Globo de conivência com os militares, alguém sempre corrigia: “A Globo apoia [assim mesmo, no presente] a ditadura”. Essa é a verdade mais dura – e é sobre ela que devemos falar.
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Cátia Guimarães é jornalista, Rio de Janeiro, RJ