Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Relato faccioso

O golpe de 1964 não foi uma reação a desmandos do presidente da República, João Goulart, como sugere o documento com que o jornal O Globo procurou, na edição de 1/9, esconjurar simbolicamente uma imagem de reacionarismo que teima em acompanhá-lo.

No quinto parágrafo do texto (ver aqui), lê-se que a divisão ideológica do mundo entre Leste e Oeste era aguçada e aprofundada no Brasil “pela radicalização de João Goulart, iniciada tão logo conseguiu, em janeiro de 1963, por meio de plebiscito, revogar o parlamentarismo, a saída negociada para que ele, vice, pudesse assumir na renúncia do presidente Jânio Quadros”.

Facciosa apresentação dos fatos. Parece que haviam feito um grande favor a Goulart permitindo-lhe assumir o cargo para o qual fora eleito (em votação separada, como se fazia, erroneamente, naquela época) e que ele, o ingrato, “radicalizou” depois de vitorioso num plebiscito que lhe restituiu plenos poderes presidenciais.

O “não” ao parlamentarismo obteve 9,4 milhões de votos, ante 2 milhões para o “sim”; houve ainda 1,2 milhão de votos nulos e em branco. Para efeito de comparação, anote-se que Jânio teve 5,6 milhões de votos para presidente e o próprio Goulart, 4,5 milhões para vice-presidente (mais do que o candidato a presidente de sua chapa, general Henrique Lott, que teve 3,8 milhões de votos).

Janismo 

Recue-se um pouquinho para entender por que houve plebiscito. Jânio Quadros, candidato apoiado entusiasticamente pelo O Globo, como se vê na capa abaixo, do dia da eleição presidencial (3/10/1960), tentou dar um golpe de Estado mediante o que seria uma falsa renúncia. O atentado à democracia falhou porque o Congresso Nacional, para surpresa de Quadros e conselheiros, imediatamente acatou o pedido de renúncia. Como o vice, Jango, estava na China em viagem oficial, assumiu o segundo na linha sucessória, o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli (PSD-SP).

Qualquer compêndio de História do Brasil dotado de um mínimo de qualidade anotará que partiu dos reacionaríssimos ministros militares de Jânio (Odylio Denys, da Guerra; Gabriel Grün Moss, da Aeronáutica; e Silvio Heck, da Marinha), derrotados em 1954 pelo gesto extremo de Getúlio Vargas, o “veto” à posse de Jango.

Consultemos, entretanto, um livro de alta qualidade. Recentemente, foi publicado o quarto volume da História do Brasil Nação: 1808-2010, coleção dirigida por Lilia Moritz Schwarcz. A historiadora encarregada de organizar esse volume, Olhando para dentro, 1930-1964, Angela de Castro Gomes, convocou para escrever sobre a Vida Política o craque Boris Fausto. Ele diz:

“Os ministros militares, filiados à corrente ultraconservadora das Forças Armadas, vetaram a volta de Goulart ao Brasil, alegando razões de segurança nacional. (…) A essa altura, é preciso considerar a conjuntura em que o novo presidente assumiu o poder, caracterizada por avanços na organização e na mobilização dos trabalhadores urbanos, de camponeses e de trabalhadores rurais. Esse quadro já permeara o governo JK, mas ganhou maior significado no governo Goulart, quando se tornou aguda a confrontação social entre os movimentos populares e setores conservadores e da extrema direita”.

A divisão ideológica foi um ingrediente, mas o pano de fundo era a luta social, que infelizmente não avançou nos últimos 50 anos como se esperava naquele tempo de grande otimismo.

Voltemos ao documentado trabalho de Carlos Chagas de que nos valemos no tópico “Jornal não ‘concordou’ com o golpe, provocou-o“, o livro O Brasil sem retoque, 1808-1964, publicado em dois volumes. Chagas acompanha o saudoso René Dreifuss (1964 – A conquista do Estado) na descrição da atividade conspiratória realizada pelo Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), pelo embrião do SNI, montado pelo general da reserva Golbery do Couto e Silva, e pelo Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), três instituições parceiras do Globo (e de outros jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão) na articulação do golpe.

Chagas era editor de Política do Globo na época do golpe. Escreve (o livro foi publicado em 2001) sem ranço de má vontade ou ânimo difamatório. Eis alguns trechos esclarecedores da posição dos grandes jornais favoráveis ao golpe e do Globo especificamente.

Verbas secretas

>> “O general Golbery começou a torna-se conhecido do empresariado e, mais importante, aprendeu a conhecer os empresários, a saber em quais confiar e a distingui-los dos exibicionistas, dos malandros e dos picaretas. Haroldo Polland e Jorge Behring de Mattos cuidavam especialmente das relações com os grandes donos de jornal, logo integrados no espírito da coisa”.

>> “Importantes seções do Ipes eram o GAP (Grupo de Assessoria Parlamentar), que orientava deputados e senadores, e o GOP (Grupo de Opinião Pública), cuja função era manipular a mídia. Glycon de Paiva [um dos fundadores do Ipes] chegou a dizer que ‘opinião pública era dinheiro’, e aos jornais, revistas, rádios e televisões jamais faltaram vultosas verbas de publicidade oculta, sem necessidade de publicar ou divulgar anúncios, mas apenas de seguir a linha ditada pela entidade”.

Identidade de interesses

>> “Mobilizadas, as elites tinham medo e se preparavam para resistir [ao que o autor chama de bagunça generalizada do governo Goulart]. De início, jamais para investir. Perceberam, com o tempo, que seria fácil mobilizar outros setores, a começar pela imprensa, já que os interesses dos proprietários de jornais, revistas, rádios e televisões eram os mesmos deles”.

A caravana

Chagas lista segmentos que se incorporaram à preparação do golpe: empresários urbanos e rurais. Ressentidos, idealistas, faltos de espaço. Os assustados “com o que imaginavam ser a comunização do país, preocupados com a fantasiosa ascensão das massas, se não aos privilégios, ao menos às decisões”. Os que hesitaram em se desligar do apoio à hierarquia. E acrescenta:

>> “Junto com os referidos, tinha de tudo. Aventureiros, gente bem-intencionada, religiosos, dondocas do society, intelectuais e políticos em profusão, daqueles que sentem o vento mudar antes mesmo de cessar a tempestade. E jornalistas. Foi mesmo um golpe, jamais uma revolução, como disseram depois seus artífices e, em especial, aqueles que com pouco ou nada contribuíram para sua eclosão”.

Editoriais pautavam reportagens

>> “Os jornais haviam perdido a isenção, os editoriais pautavam as reportagens. O Jornal do Brasil ainda procurava constitui-se na exceção. Carlos Castello Branco, em sua coluna política [todas as colunas de Castellinho estão disponíveis aqui], explicava ter o presidente se colocado à frente da onda para não ser tragado por ela, ou seja, radicalizara, no dia 13 [de março, quando se realizou na Central do Brasil, no Rio, o Comício das Reformas] para não ser ultrapassado pelo cunhado [Leonel Brizola] e as forças mais extremadas”.

>> “O presidente está preocupado com a mídia e, através de Jorge Serpa, pede a Nascimento Brito [dono do JB] que não seja violento nos editoriais da edição de domingo. Não é atendido, porque o editorial se intitula ‘Na ilegalidade’, e conclui: ‘O presidente não vai dar o golpe. Já deu…’ Não há como negar, a sublevação [de marinheiros, liderados pelo agente da CIA Cabo Anselmo] no Sindicato dos Metalúrgicos assustou meio mundo, na classe média, a ponto de o líder do PSD na Câmara, deputado Martins Rodrigues, conhecido por suas posições progressistas, favorável às reformas, me haver declarado na segunda-feira [30/3/1964] que ‘estavam criando um soviete na Marinha de Guerra, algo inadmissível e preocupante’. Por ordens diretas de Roberto Marinho, aquela foi a manchete da edição de O Globo de terça-feira, em oito colunas”.

Mergulhados na conspiração

>> “Os donos de jornal já se encontravam mergulhados até o pescoço na conspiração, colocando a notícia a serviço da precipitação da queda do governo. Em O Globo, poucos jornalistas sabiam da estratégia dos patrões, mas no Estado de S. Paulo a participação dos profissionais era ostensiva. Flávio Galvão tinha sido até dispensado de suas funções redacionais para dedicar-se em tempo integral à conspiração, entrosadíssimo com oficiais do Exército e da Aeronáutica. Os três filhos de Júlio de Mesquita Filho, Júlio Neto, Ruy e Carlão, participavam das démarches do pai, que sempre acompanhavam (….)”.

>> “Nesse domingo, 29, continua a peregrinação dos emissários de Magalhães Pinto [governador de Minas Gerais] no Rio. José Luís de Magalhães Lins, Oswaldo Pieruccetti e José Monteiro de Castro vão rodar 240 quilômetros, de carro, visitando, entre outros, [os generais] Castello Branco, Cordeiro de Farias, Eurico Dutra e os diretores de jornal Roberto Marinho, Nascimento Brito e Niomar Muniz Sodré”.

No dia 31 de março, “cada um dos grandes jornais, todos já posicionados e integrados no golpe, pinçariam as frases que bem entenderam para suas manchetes, acirrando ainda mais a opinião pública”.

Conjura dos poderosos

Uma palavra de Jango, dada ao Diário de Notícias no Uruguai, depois da queda, citada por Carlos Chagas, serve como fecho de mais este tópico suscitado pela manobra falsificadora da História do Globo:

>> “Caí abatido pela conjura dos poderosos que estabeleceram o controle total dos meios de difusão. Foi fácil o envenenamento da opinião pública e dos escalões intermediários das Forças Armadas”.

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