Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A paz construída em bytes

Embora muita atenção tenha sido dedicada recentemente ao debate do papel das mídias sociais em acontecimentos de grande impacto como a Primavera Árabe e a guerra na Síria, uma revolução mais silenciosa vem ocorrendo em todo o globo. Trata-se de uma revolução em inovação, informação e comunicações. E ela poderá ter grandes implicações no cotidiano, da Colômbia ao Egito, do Quênia ao Afeganistão.

Essa revolução ocorre na maneira como tecnologias estão sendo usadas para mitigar causas de violência. É difícil pensar em uma única questão no campo da gestão de conflitos – violência eleitoral, ódio interétnico, disputas por terra, violência de gênero, etc. – na qual não tenha havido um esforço para usar a mídia digital e redes tecnologicamente equipadas para interferir nas raízes do conflito.

O catalisador dessa revolução silenciosa vem a ser uma realidade única que é tão comum como incrível: pela primeira vez na história, pessoas de toda parte – incluindo de zonas pobres em conflito – têm a capacidade de tirar fotos, postar dados, publicar textos e enviar informações para todo o mundo ou para o outro lado da rua com o clique de um botão.

Conflitos violentos

Somos todos fazedores de mídia social e é difícil exagerar o alcance dessas ações no campo da construção da paz todos os dias. Com mais de 6 bilhões de telefones celulares no mundo e mais de um terço da população mundial online, vimos uma expansão notável nas ferramentas que os construtores da paz têm a sua disposição.

Crowdsourcing, mapeamento de crise, microblogs – em menos de uma década, esses recursos se tornaram essenciais para o apoio de análise e decisões no ciclo inteiro dos conflitos, da prevenção à estabilização pós-conflito. Eis alguns exemplos do que pode ser batizado de revolução da “Tecnologia da Paz”.

Promover o diálogo intercomunitário, por exemplo. No Iraque, há um forte histórico de solução de conflitos sustentando a rede online SalamShabab.com (Juventude da Paz), programas de TV e grupo de Facebook com cerca de 30 mil usuários ativos – isso com pesquisas que mostram mudança de atitudes sobre tolerância étnica entre eles.

Há também uma rede maior, YaLa-Young Leaders, com 200 mil membros, tomando forma entre israelenses, palestinos, e outros no Oriente Médio, fazendo campanha ativamente contra conflitos.

A gestão de eleições é outro exemplo. Virtualmente toda disputa hoje inclui um monitoramento ativo da violência à fraude, usando um arsenal de plataformas de mídia social. No Quênia e no Sudão do Sul, por exemplo, referendos recentes foram considerados um sucesso em termos de prevenção de violência e redes de mídia social foram parte importante do kit de ferramentas da sociedade.

Impedir a violência de gangues: a penetração do Twitter no Brasil está entre as maiores do planeta, o que faz dele uma plataforma valiosa e muito usada por indivíduos e organizações comunitárias que trabalham em campanhas para promover a segurança dos cidadãos. Iniciativas semelhantes em outras redes sociais também foram amplamente usadas no México e na Colômbia.

Evitar disputas por recursos naturais: redes de advertência antecipada como a Conflict Early Warning and Response Mechanism (CEWARN) na África subsaariana tentam alavancar a mídia social, com informações por satélite, reportagens da mídia tradicional, para evitar conflitos por terra e água, outros recursos.

Criar uma Constituição: observamos esforços para usar as redes sociais em nações que passam por períodos de transição, como o Egito, para ajudar a criar Constituições com contribuição da sociedade.

Essa alternativa não foi muito bem-sucedida no Egito, mas ali, como também no Marrocos e na Islândia, que citamos como exemplos, a experiência permitiu às comunidades aprender sobre crowdsourcing, o modelo de produção que utiliza a inteligência e os conhecimentos coletivos e voluntários, geralmente espalhados pela internet, para resolver problemas, criar conteúdo e soluções ou desenvolver novas tecnologias. Esse processo certamente continuará.

Protesto contra a violência: hoje, muitos ouviram falar da campanha no Facebook, em 2008, “Um milhão de vozes contra as Farc”, usada para reunir gente em toda a Colômbia e no mundo para protestar contra as táticas violentas usadas pelas Forças Revolucionárias Armadas da Colômbia.

Essas são apenas algumas das maneiras pelas quais as tecnologias estão sendo adaptadas e adotadas com o fim de reduzir conflitos. O sucesso dessas iniciativas é ambíguo, para dizer o mínimo, por uma infinidade de razões, ou porque o uso de tais tecnologias é algo muito novo, ou o fato de que muitos conflitos violentos estão enraizados numa dinâmica humana complexa.

Revolução tranquila

A solução dos problemas subjacentes de um conflito exige muito mais do que uma ferramenta tecnológica pode oferecer e é por isso que muitas das iniciativas citadas deram resultados limitados. Contudo, elas e outros programas oferecem uma esperança.

No centro de tudo isso estão os dados sem precedentes produzidos pela comunicação e captados por meio das novas tecnologias digitais. Com frequência ouvimos falar dos “Big Data” e lemos sobre números surpreendentes de como o Facebook recebe mais de 300 milhões de novas fotografias diariamente, no YouTube são carregadas 72 horas de vídeo por minuto e num único ano os humanos transmitem mais dados do que em todos os anos anteriores combinados.

Para os que trabalham em zonas de conflito, entretanto, a grande novidade não diz respeito à quantidade dos dados, mas à influência sem precedentes na experiência humana. Não só enormes quantidades de informações sobre a dinâmica e os sentimentos humanos – o DNA do conflito, por assim dizer – estão sendo compartilhados nas redes sociais como Facebook, Twitter, Flicker, Tumblr, Google Plus e YouTube.

A capacidade tecnológica de analisar essa imensa riqueza de informações também está se tornando mais barata e mais eficiente. Já vimos, por exemplo, dados de telefone celular sendo usados para antecipar os movimentos dos refugiados em larga escala, análise que pode obviamente ser valiosa para poupar a vida de atingidos pela guerra.

Ainda não temos condições de usar esses tipos de ferramentas e conjuntos de dados para prever a violência antes que da explosão dela. O cientista político Jay Ulfelder, integrante de uma equipe do Museu do Holocausto dos EUA que trabalha no desenvolvimento de um modelo de previsão para a prevenção de atrocidades, escreve:

“No tocante à previsão das principais crises políticas, golpes e levantes populares, há muitos elementos de previsão plausíveis pelos quais não dispomos de qualquer dado. Grande parte do que temos está muito esparsa ou muito exagerada para ser incorporada em modelos de previsão cuidadosamente projetados”.

Além disso, como muitos outros especialistas desse campo observaram, a história nos ensina que a primeira reação não atende necessariamente aos alertas avançados.

Mesmo tendo em mente essas advertências, é claro que se ampliarmos nosso acesso a informações sobre indivíduos e comunidades em risco de conflito, estarão criadas condições tanto para um alerta quanto para uma reação antecipada.

Seria errado terminar sem reconhecer que a mídia e a tecnologia digitais contribuíram para instigar conflitos violentos.

Não passa um dia sem que se veja uma notícia sobre seu uso pela Al-Qaeda ou por outras organizações terroristas para o recrutamento, captação de recursos, detonação de bombas, ou para a coordenação e execução de ataques como o recente no Shopping Westgate em Nairóbi.

Mas a questão é realmente essa – a história não contada da tecnologia e da paz. Quando o shopping Westgate foi invadido, as mensagens arrogantes publicadas no Twitter pelos terroristas do Al-Shabab aumentaram a um ritmo vertiginoso. Mas quantos de nós ouviram falar de Philip Ogola, que tuitou ininterruptamente do centro de comando da mídia social da Cruz Vermelha do Quênia, orientando a ajuda para os locais onde se poderia salvar vidas em meio a toda aquela violência? Está na hora de contar essa história para todo o mundo ouvir, para iluminar o palco da tranquila revolução da “tecnologia para a paz”.

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Sheldon Himelfarb é diretor de cinema e integrante do United States Institute of Peace; foi conselheiro do Comitê de Relações Exteriores do Congresso americano e comentarista da National Pulblic Radio