Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Brucutus da internet

A matéria de capa da mais recente edição de CartaCapital trata de questão importante – talvez a mais importante da vida contemporânea: a nova sociabilidade construída nas redes sociais. Lee Siegel, em coluna publicada em O Estado de S. Paulo, manifestou seus temores em relação ao caráter libertador das novas formas de intersubjetividade.

“Poderíamos dizer que a internet cumpriu a promessa anômica da televisão. O afastamento das demais pessoas tem agora uma estrutura que se sustenta sozinha: podemos estar ao mesmo tempo sozinhos e acompanhados pelos outros. Na internet, a distração absoluta se assemelha ao envolvimento absoluto. E, quando estamos na rede, a falta de empatia é um estado de espírito que permeia tudo. Um número cada vez maior de pessoas parece tentado, pela tela e pela solidão, a maldizer, aterrorizar e até destruir outros que estão presentes no mundo online apenas como fantasmas, como projeções da atormentada imaginação de outrem.”

O debate sobre temas políticos, econômicos e sociais, por exemplo, desceu aos esgotos, como bem observou Renato Janine Ribeiro em sua coluna no Valor. Os miasmas da intolerância emanam dos destroços sociais e culturais que ora flutuam sobre o planeta. Os despojos da civilidade são abundantes no Brasil, onde prevalecem a prepotência dos semi-ilustrados e as vulgaridades do Big Brother e assemelhados.

Escrevi em outra ocasião que os bárbaros do teclado manejam com desembaraço a técnica das oposições binárias, método dominante nas modernas ações e interações entre os participantes das redes. Nos comentários da internet, vai “de vento em popa” o que Herbert Marcuse chamou de “automatização psíquica” dos indivíduos. Os processos conscientes são substituídos por reações imediatas, simplificadoras e simplistas, quase sempre grosseiras, corpóreas. Nesses soluços de presunção opinativa, a consciência inteligente, o pensamento e os próprios sentimentos desempenham um papel modesto. Convencidos da universalidade do seu particularismo, os internautas comentaristas distribuem bordoadas nos que estão no mundo exatamente como eles, só que do lado contrário.

Anarquia de massas

Os indivíduos mutilados executam os processos descritos por Franz Neumann em Behemoth, seu livro clássico sobre o nazismo: “Aquilo contra o que os indivíduos nada podem e que os nega é aquilo em que se convertem”. O que aparece sob a forma farsista de um conflito entre o bem e o mal está objetivado em estruturas que enclausuram e deformam as subjetividades exaltadas. A indignação individualista e os arroubos moralistas são expressões da impotência que, não raro, se metamorfoseia em violência ilegítima.

Os processos econômicos contemporâneos impulsionam práticas, formas de vida e atitudes forjadas pelo domínio dos aparatos objetivos destinados a executar a lobotomia das capacidades subjetivas que ensejam a crítica. O domínio aparece, assim como um procedimento técnico-administrativo, cuja racionalidade está encarregada de remover as sobras de razão que os indivíduos tentam preservar. Na sociedade de massa é preciso não sentir o que se pensa, nem pensar o que se sente. A banalidade do mal se desdobra no mal da banalidade.

Há quem ainda apresente sintomas de sobrevivência do DNA do processo civilizador e dos valores da sociedade moderna e ouse escrever para as seções de Cartas ao Leitor ou comentar nos blogs os comentários dos fanáticos do Apocalipse. Os ululantes retrucaram com as armas do preconceito, da intolerância e da apologia da brutalidade, sem falar nos ataques em massa à última flor do Lácio, inculta e bela.

Os mais furiosos se apresentam como “humanos direitos”, em contraposição aos defensores dos “direitos humanos”. Fico a imaginar como seria a vida dos humanos direitos na moderna sociedade capitalista de massa, crivada de conflitos e contradições, sem as instituições que garantam os direitos civis, sociais e econômicos conquistados a duras penas. A possibilidade da realização desse pesadelo, um tropismo da anarquia de massas, tornaria o Gulag e o Holocausto um ensaio de amadores.

No derradeiro parágrafo de seu livro Big Switch: Rewiring the World, From Edison To Google, Nicholas Carr deixa uma mensagem aos crentes no caráter benfazejo dos avanços das novas tecnologias da informação. Quando morrem, as velhas gerações levam consigo a memória do que foi perdido com o advento da nova tecnologia. Resta somente o novo que foi conquistado. Assim, o progresso encobre (o que foi perdido) sua trajetória, renovando permanentemente a ilusão de que estamos onde deveríamos estar.

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Luiz Gonzaga Belluzzo é economista