A paralisação do governo americano entra hoje no sétimo dia e os responsáveis pela criação deste mundo de trevas ainda não se cansaram. Seria injusto culpar a imprensa estrangeira por cobrir o shutdown de 2013 como um impasse entre democratas e republicanos. Boa parte da imprensa americana, que conhece melhor a verdade, faz o mesmo.
Quanto maior a polarização política dos últimos 30 anos, mais os jornalistas americanos passaram a ver o mundo como uma partida de futebol que estão apitando. Têm medo ser acusados de favoritismo porque já vivem intimidados com a propaganda conservadora que representa a imprensa como predominantemente esquerdista. E mais, têm preguiça moral e intelectual e quem diz isso é Seymour Hersh, o lendário repórter de 76 anos que revelou para o mundo o massacre de My Lai no Vietnã.
É importante deixar claro que a paralisação na capital americana não é fruto da recusa de Barack Obama, o presidente democrata, de fazer concessões à oposição republicana.
O governo fechou porque o Partido Republicano está numa batalha contra si mesmo. Não precisava fechar. A qualquer momento, nos últimos meses, era só o artificialmente bronzeado líder da Câmara John Boehner ter oferecido para voto a ritual medida de autorização de aumento do teto da dívida pública e permitir ao governo continuar funcionando. Ele contaria com um número suficiente de votos de republicanos moderados. As discussões existenciais sobre como continuar paralisando o governo Obama, obstruindo qualquer iniciativa sua, poderiam continuar normalmente. Afinal, em janeiro passado, o alaranjado Boehner avisou às suas tropas: não se negocia qualquer política doméstica com Barack Obama. Logo em seguida, a minoria republicana no Senado adotou o lema.
Segregação ideológica
Imaginem se, em 2009, quando ainda tinham maioria na Câmara, os líderes democratas fizessem a seguinte chantagem com o povo americano: só autorizamos o orçamento do governo se os cortes de impostos para os ricos transformados em lei por George W. Bush (que contribuíram para o déficit) forem suspensos. Seriam chamados de terroristas ou bolcheviques.
Pois é esta a tática terrorista – a extorsão de um resgate – que está em curso. A lei do seguro saúde, o Obamacare, proposta pelo Executivo, passou pelo Legislativo, foi contestada no Judiciário e afinal confirmada pela instância máxima, a Suprema Corte. Ponto final, diriam os observadores da democracia americana. Mas, como disse recentemente o ex-presidente Jimmy Carter, ao tomar conhecimento dos detalhes da espionagem da NSA, “A democracia não funciona na América, neste momento.”
Washington está paralisada porque a minoria extremista do Tea Party decidiu que, ou o presidente ignora o sistema de governo fundado no século 18 e suspende o Obamacare, ou o país marcha para o precipício de um calote sem precedentes, quando acabar o dinheiro do Tesouro, no meio de novembro.
O delírio autoritário foi mais longe. Numa lista de exigências para soltar o refém, Boehner incluiu itens como novos cortes de impostos, prospecção de petróleo offshore, suspensão dos limites de emissões de poluição, desmonte da reforma financeira pós-crash de 2008 e por aí vai.
Não importa avaliar o grau do instinto suicida de John Boehner e seus anões do apocalipse. Ainda que os Estados Unidos não empurrem a economia global ladeira abaixo com um calote em novembro, a impunidade que estamos testemunhando agora afeta mais do que a economia em 2013, ela testa a resistência de um sistema que, apesar de imperfeito, ainda é um Norte para tantos no mundo.
E por que os anões do Congresso não têm medo de ser punidos em seus currais eleitorais? Parte da explicação pode estar no que os sociólogos chamam de o Big Sort, a Grande Separação, um movimento migratório nos últimos 20 anos. Cada vez mais, os americanos escolhem morar em estados ou cidades onde esperam ter como vizinhos quem pensa como eles. O resultado desta segregação ideológica é a disparada de resultados de eleições locais por ampla maioria. Assim, um deputado republicano moderado não teme perder o cargo para um democrata e sim ser derrotado por um lunático do Tea Party na primária eleitoral do próprio partido.
Frivolidade adolescente
Um comentarista político nova-iorquino classificou o cenário em Washington de uma crise doméstica dos mísseis cubanos. Alguém pode esbarrar no botão errado, com consequências catastróficas para o resto do mundo.
Uma minoria entre os derrotados nas urnas na eleição presidencial de 2012 está agindo como se o Zimbábue fosse aqui. Fala de impeachment com a frequência e a frivolidade com que adolescentes debatem o videoclipe da Miley Cyrus. Podem ter fracassado em fazer decolar um processo de impeachment. Mas conseguem fazer mais: para atingir o presidente, atacam a instituição da presidência.
******
Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York