Na Roma antiga, o povo apreciava furiosamente duelos sangrentos, gentes devoradas por leões. Ainda hoje, multidões lotam estádios para ver mulheres acusadas de adultério serem apedrejadas até a morte.
No Brasil, sem lapidação nem duelos –quando não há jogos importantes na TV–, a mesma torcida excita-se com casos como o do mensalão.
Vive-se a era da vingança. Quem um dia se sentiu chicoteado agora quer chicotear. Não importa de que campo se fale: sexual, ideológico, econômico, social ou racial.
O Judiciário, algumas vezes, entra de estraga-prazeres na festa, com o formalismo de exigir provas, o que adia ou inviabiliza os encarceramentos dos sonhos da galera.
A Folha de S.Paulo distinguiu-se por ter parado para repensar a condenação antecipada dos mensaleiros. Mais ainda por sustentar a valente e explosiva tese, contrária ao senso comum, de que cadeia não reduz criminalidade nem resolve problemas sociais. Mas foi mal ao atacar, em editorial, o ministro Celso de Mello, que reclamou, em entrevista à própria Folha, da publicidade opressiva usada para obrigá-lo a votar como queria a opinião pública. A pressão da qual o ministro reclamou foi concreta, factual e generalizada, como depois indicou Janio de Freitas. Mas o texto gerou ainda o artigo equivocado do professor da Fundação Getulio Vargas Diego Arguelhes.
Beija-mão
Escorado no fato de que ministros atendem a imprensa quando procurados (e por que não?), partiu para a ficção. Disse que o ministro atuou com vedetismo e distribuiu pela internet trechos de voto não proferido e disponibilizou para a mídia, antes do fim da sessão, manifestação que acabara de fazer.
Os jornalistas que cercam os gabinetes do Supremo Tribunal Federal (STF) têm algo a dizer ao professor: o ministro não fez circular coisa alguma pela internet e a divulgação de votos apresentados é dever, não ato de vaidade do juiz.
A pedrada mais torta contra o decano do STF, porém, foi a ressurreição, por jornalistas da Folha, de uma fantasia criada pelo ex-ministro da Justiça Saulo Ramos, morto em abril. Na autobiografia, escrita de memória, vingou-se de quem o magoou em vida (vide a resenha “Lorotas a granel” na internet). Para “provar” que Celso de Mello não era imune à pressão da imprensa, citou caso em que o ministro teria mudado voto para ficar bem na foto.
Discutia-se a validade do novo domicílio eleitoral do ex-presidente José Sarney, que foi quem levou o ministro ao STF. Diz Saulo que Celso, “o último a votar no julgamento”, telefonou-lhe para justificar por que seria contrário ao pedido: como aFolha anunciara que ele votaria a favor e a questão já fora decidida pelos outros dez ministros, sua posição não faria diferença. Inconformado, o memorialista escreve que disse um palavrão, bateu o telefone e jamais voltou a trocar palavra com o ministro.
Na vida real, Celso de Mello era o segundo mais novo ministro da corte. Portanto, um dos primeiros a votar. Seu voto foi enorme –desses que levam dias para preparar. Os arquivos da Folha não registram a notícia mencionada. E, por fim, o próprio Saulo relata, no mesmo livro, outros diálogos com Celso de Mello. Sete anos depois, no beija-mão do ministro em sua posse na presidência do STF, abraçou-o efusivo após Márcio Thomaz Bastos.
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Márcio Chaer, 58, é jornalista e diretor da revista eletrônica “Consultor Jurídico”