Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O espectro das medidas de exceção

Primeiro foram as prisões arbitrárias nos protestos iniciados em junho e a tentativa de enquadrar jovens sem relação entre si, e sem participação em depredações, no crime de formação de quadrilha; depois, a aprovação da Lei de Organização Criminosa, no âmbito federal, e em seguida uma lei inconstitucional, no Rio de Janeiro, proibindo o uso de máscaras nas manifestações; na semana passada, em São Paulo, a ressurreição da Lei de Segurança Nacional para enquadrar um casal que aparentemente apenas documentava a destruição promovida pelos Black Blocs; finalmente, no Rio, a expedição de mandados de busca e apreensão na casa de jovens, para averiguação de seus vínculos com “Black Blocs, Anonymous ou qualquer outro grupo que se utilize dos subterfúgios do anonimato para impor terror contra o Estado e demais cidadãos”, embora pelo menos um desses jovens trabalhe, estude e tenha participado de apenas uma manifestação: seu pecado maior talvez seja expor suas opiniões no Facebook.

Agora, as recentes reportagens sobre o PCC e seus supostos planos para agir durante futuras manifestações públicas ampliam as preocupações quanto às possibilidades de repressão do Estado, como apontou Luciano Martins Costa em artigo neste Observatório (ver “Para ler e desconfiar“):

“Primeiro, revela-se o mapa do poderio dos criminosos. Depois, afirma-se que os bandidos haviam planejado assassinar o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. Finalmente, anuncia-se que criminosos pretendem se infiltrar nos protestos de rua para matar policiais.

“Aonde nos leva essa sequência?”

Não é difícil concluir:

“A ser levada a sério (…), temos o quadro perfeito para justificar uma proibição de manifestações públicas ou – pior – um cenário no qual os policiais militares irão para as ruas, durante os protestos, ainda mais tensos e com o dedo no gatilho”.

Assim, de aberração em aberração, de intimidação em intimidação, vamos instalando suavemente um Estado de exceção. 

Da LSN ao “terrorismo”

Como escreveu o jurista Dalmo de Abreu Dallari no Estado de S.Paulo de domingo (13/10), “a punição dos vândalos ostensivos, dos que participam diretamente da prática das violências, é uma exigência da ordem jurídica, assim como a punição dos que, a distância, ocultamente, proporcionam os meios para que eles pratiquem esses crimes” (ver “Duplo equívoco“). Dallari contestava o apelo à LSN, mas não a Lei de Organização Criminosa. Não seria o Código Penal suficiente para enquadrar essas pessoas?

O próprio Código Penal, entretanto, está para ser alterado e as propostas da comissão encarregada dessa tarefa vêm sendo objeto da crítica de inúmeros juristas. Uma delas se refere à intenção de tipificar o crime de terrorismo, que implicaria transferir para o direito penal uma questão a ser enfrentada no campo da política. Como apontou Arnaldo Bloch em artigo no Globo (“A in(segurança) nacional“, 13/10), por essa proposta, “em meio a uma listagem de atos terroristas com penas de até 20 anos (na LSN, a pena máxima é de 10) (…) aparecem também (…) os de ‘incendiar, depredar, saquear, explodir ou invadir qualquer bem público ou privado’, o que leva a pensar em como seriam julgados os excessos das atuais manifestações”.

Porém, quem se assusta com a arbitrariedade policial ou o endurecimento da legislação penal e aponta aí indícios de um retorno aos tempos sombrios de nossa história recente talvez não perceba que nossa precária democracia convive com ilhas de exceção. Bastaria recordar a premiada série de reportagens que O Globo publicou em 2007 sobre “os brasileiros que ainda vivem na ditadura”, expondo a situação de moradores de favela submetidos às ações da polícia, do tráfico e da milícia. Bastaria ler nos jornais de hoje sobre o movimento dos controladores das vans em Rio das Pedras, favela de Jacarepaguá, em protesto contra a fiscalização da Prefeitura.

A violência gratuita e suas consequências

Como vinha ocorrendo desde junho, o comportamento da polícia durante as manifestações dos professores em greve no Rio oscilou entre a truculência e a apatia. Nos primeiros dias do mês houve uma repressão indiscriminada e abusiva. Já na noite de segunda-feira (7/10), quando a passeata dos docentes já havia terminado sem qualquer incidente, os policiais custaram a agir diante da depredação promovida pelos Black Blocs, que tentaram incendiar a Câmara dos Vereadores, tocaram fogo em ônibus e deixaram o Centro da cidade num lastimável estado de destruição.

Tamanha apatia faz supor a existência de interesses ocultos na permissão ao vandalismo: favorecer as imagens de caos, assustar o público, afastá-lo das ruas. A quem isso pode beneficiar?

A gratuidade daquela violência, aliás, foi tamanha que muitos sugeriram a hipótese de provocação: afinal, não há nada mais simples do que se infiltrar nesses grupos. Em outros tempos, quando havia mais clareza sobre as ações políticas, tais iniciativas seriam rapidamente contidas pelos organizadores das manifestações. Hoje, louva-se a suposta ausência de lideranças e a “horizontalidade” dos movimentos, sem se considerar as consequências dessas ações alegadamente espontâneas.

Mas falar em gratuidade é provocar a reação intempestiva por parte de quem é militante ou defensor dos Black Blocs: nada poderia ser considerado gratuito quando se compreende que a violência é estrutural e inerente ao sistema. Temos aí a melhor forma de estar sempre com a razão. O problema é convencer os outros, mas isso não parece fazer parte das preocupações desse grupo.

Outro problema, talvez mais grave, é dar todos os pretextos para o endurecimento da legislação penal e da atuação policial, sobretudo quando vislumbramos o cenário da Copa do Mundo do ano que vem. E o previsível apoio popular a medidas de exceção para o combate ao caos na cidade ignora que essas medidas aparentemente se destinam a um grupo específico de pessoas, mas de fato podem atingir qualquer um, bastando para isso que os detentores do poder assim o desejem.

Hesitações perigosas

Intelectuais e líderes políticos de esquerda sabem disso. Entretanto, muitos continuam a hesitar em condenar essas ações, preferindo dizer que é preciso “tentar entender” esses jovens. Como já comentei aqui (“Os abusos do Estado e o elogio da destruição“), essa atitude deveria estender-se às demais manifestações de revolta. A propósito – pelo menos de acordo com os adeptos da criminologia crítica –, nada é mais simbólico da violência do Estado do que o sistema penal. O falecido criminalista Augusto Thompson, por exemplo, afirmava que “o criminoso sempre expressa uma rebeldia ao sistema”. No entanto, raramente se vê alguma atitude em defesa desses rebeldes. Tampouco seria possível ignorar quantas vezes essa rebeldia se transforma em solidariedade, como sugere o exemplo do PCC.

A tendência dessa postura “compreensiva” em relação aos Black Blocs é a de acolher acriticamente as ações desse grupo como fruto de uma indignação represada de jovens que não encontram lugar na sociedade e ignorar a hipótese de instrumentalização desse movimento a serviço de interesses diametralmente opostos aos que desejam combater o “sistema”.

A ética da mídia alternativa

A dificuldade de uma discussão serena num momento de exaltação de ânimos se amplia na internet, onde “os bárbaros do teclado manejam com desembaraço a técnica das oposições binárias”, como apontou Luiz Gonzaga Belluzzo (ver “Brucutus da internet“).

Quem frequenta a rede verifica exatamente esse quadro na simplificação das acusações à grande imprensa, que em nada contribui para a formação de um senso crítico.

O pior é registrar os casos em que a mídia alternativa, autoproclamada “independente”, reproduz a prática que diz condenar e distorce as informações para fazer prevalecer seu ponto de vista.

Foi o que aconteceu com uma montagem que exibia imagens da exuberante manifestação dos professores na passeata do dia 7/10 e as comparava com a edição do Globo do dia seguinte, que abria com a foto de um Black Bloc vibrando em frente a um ônibus incendiado, o amarelo-fogo tomando praticamente toda a metade superior da capa: a montagem cortava a metade restante, onde o jornal publicava foto menor da multidão reunida na praça, insinuando que o jornal não apenas enfatizou os episódios de violência como ignorou a manifestação pacífica dos professores.

Além do mais, a mais bela imagem da passeata reproduzida na montagem – a multidão descendo a avenida, duplicada na fachada espelhada de um prédio – era de um fotógrafo do Globo e havia sido publicada no site e demais plataformas digitais do jornal. Mas essa informação, naturalmente, foi ignorada.

O mais curioso é que quem apoia os Black Blocs enaltece a destruição e vibra com a pirotecnia que esse grupo realiza, mas depois protesta quando a “grande mídia” destaca essas cenas, produzidas justamente para ganhar publicidade.

Costuma-se dizer que, numa guerra, a primeira vítima é a verdade. Em certos casos, a lógica disputa essa primazia.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)