Como narrar, sem ser processado, uma vida literária que incluía a documentação visual de centenas de atos de sexo entre homens para a pesquisa de Alfred Kinsey? Ou biografar um pintor e manter a paz com sua viúva ao revelar que o poeta que ela abrigava em casa tinha um caso com seu marido? Ajuda ter construído uma reputação sólida como a de Justin Spring que, no momento, se debruça sobre a vida de Roberto Matta, pintor surrealista chileno morto em 2002.
No momento, a polêmica criada pela ONG Procure Saber não repercute na mídia de língua inglesa, embora alguns de seus protagonistas sejam celebridades aqui e na Europa. Nos EUA, onde a Primeira Emenda da Constituição, adotada em 1791, é uma âncora dos debates sobre a liberdade de expressão, as declarações do compositor Chico Buarque na semana passada, defendendo o pagamento às filhas de Garrincha pela publicação da biografia de Ruy Castro, poderiam ser recebidas com estranheza. O meio literário nova-iorquino conhece Chico mais como o autor de Budapeste do que de “Carolina” e, por mais que escritores defendam o direito à privacidade, seria difícil fundar uma ONG americana para embargar biografias.
O autor nova-iorquino Justin Spring, embora limite sua exploração a vidas de artistas e escritores, não foge de material controvertido, e o exemplo mais recente foi sua elogiada biografia do escritor e artista de tatuagem Samuel Steward, Secret Historian (2010), finalista do National Book Award. Este ano, Spring foi escolhido como um dos fellows do Leon Levy Center for Biography, um instituto criado para apoiar a pesquisa e produção de literatura biográfica que funciona na City University of New York.
O centro é dirigido por um escritor que entende de música, músicos e herdeiros de músicos. Gary Giddins é autor de duas enciclopédicas biografias do cantor Bing Crosby – o segundo volume deve sair em 2016. O primeiro, lançado em 2001, não teve colaboração da viúva de Crosby, Kathryn. Ao ler o primeiro livro, por insistência de um filho, ela escancarou os arquivos do espólio para Giddins, um dos mais admirados historiadores do jazz. Sua biografia de Charlie Parker, Celebrating Bird: The Triumph of Charlie Parker, de 1986, está sendo relançada. “Cadê a grande biografia do Tom Jobim?”, pergunta Gary Giddins quando atende o “Aliás” para comentar sobre o debate entre os músicos do Procure Saber e os escritores de biografias.
Giddins – que se disse decepcionado em saber que músicos brasileiros que tanto admira se posicionaram dessa forma – considera a sugestão de pagamento a biografados ou herdeiros absurda, o equivalente a pagar para fazer entrevistas jornalísticas. Quanto à exigência de autorização, dá um exemplo difícil de contestar. J. Edgar Hoover, o corrupto diretor do FBI por mais de três décadas, teve enorme sucesso intimidando jornalistas. “Se sua biografia tivesse aparecido mais cedo”, sugere, “dificilmente ele teria mantido o poder por tanto tempo.”
Novo fellow do centro que Giddins dirige, Justin Spring lembra que os autores americanos são menos cerceados do que europeus, mas deixa claro que, atrás de toda biografia, há um ocupado departamento jurídico na editora.
As leis americanas chegaram a um bom equilíbrio entre os direitos de expressão de biógrafos e os direitos dos biografados e de seus herdeiros?
Justin Spring – Elas são, de maneira geral, melhores que as britânicas e melhores ainda que as francesas. Mas a preocupação legal tem um papel importante no processo de escrever uma biografia, e acho que a maioria dos leitores nunca fica sabendo disso.
Há alguma diferença entre a biografia em livro, uma ferramenta de narrativa histórica, e um perfil biográfico numa revista?
J.S. – A biografia é vital para o público formar sua visão de mundo, entender como as vidas são vividas. Mas há algo estranho que observo: os acadêmicos parecem demonstrar preconceito contra o gênero e contra biógrafos. Acho que a biografia existe entre os dois mundos, o jornalístico e o acadêmico. Mas, é claro, há todo tipo de biografia, da mais brilhante e bem pesquisada à mais deplorável e negligente.
O que acha da sugestão feita pelo grupo Procure Saber de que o dinheiro da venda de biografias deve ser compartilhado com biografados ou herdeiros? Há casos conhecidos nos EUA em que uma biografia deixou de ser escrita por uma exigência de pagamento?
J.S. – Primeiro, deixo claro que não há nenhuma quantia expressiva para beneficiar quem recolher uma porcentagem da venda de livros. Mas o critério de cooperação é do biógrafo e do biografado: eles têm que deixar clara a natureza do projeto e o acesso do autor aos arquivos da pessoa cuja vida vai contar. Em alguns casos, se pode justificar uma participação financeira – eu não conheço nenhum em particular. Um exemplo: pode interessar a um biografado subsidiar as despesas de uma pesquisa. O caso que me ocorre é o de Edmund Morris, biógrafo do ex-presidente Ronald Reagan. Mas, a meu ver, o autor acabou dando uma aparência de comprometimento por aceitar dinheiro de Reagan. Pessoalmente, eu não me envolveria com o espólio de um biografado que me cobrasse participação em vendas do livro nem aceitaria apoio financeiro do espólio. Isso compromete a independência. Jamais gostaria de ter uma espada como essa sobre minha cabeça. Mas também prefiro não escrever uma biografia em que herdeiros se recusam a cooperar com o projeto.
Alguns biógrafos preferem tomar distância de personagens vivos. É seu caso?
J.S. – Sim. Eu prefiro contar a história de vidas encerradas. Mas não aceitaria começar uma biografia em que, por exemplo, um testamento impõe restrições a minha liberdade de pesquisa ou escrita.
Seu último livro biográfico, ‘Secret Historian: The Life and Times of Samuel Steward’, trata de um personagem que teve não só uma vida literária como também uma intensa e incomum vida sexual. Como foi assumir o papel de revelar tantos dados desconhecidos do público?
J.S. – Escrevendo a biografia do Sam Steward, tive que passar por uma detalhada revisão legal dentro da editora para que a publicação fosse autorizada. O problema, nesse caso, não eram instruções dele ou exigências do executor do espólio, e sim centenas de parceiros sexuais masculinos, muitos deles com uma vida pública heterossexual, homens casados. O editor sugeriu que déssemos pseudônimos para proteger a privacidade de viúvas ainda vivas e dos filhos, e eu concordei. Afinal, a credibilidade da narrativa não foi comprometida e pode ser confirmada pelos arquivos de Steward, um diarista meticuloso. Os arquivos foram transferidos recentemente para a Beinecke Library, da Universidade Yale, e estão abertos ao público.
Em uma biografia anterior sobre o grande pintor figurativo Fairfield Porter você revelou que o artista era bissexual e se envolveu com o poeta James Schuyler, que, durante algum tempo, viveu na casa da família Porter. Mas a viúva do pintor estava viva na época do lançamento. Ela cooperou?
J.S. – Durante todo o projeto eu trabalhei em contato próximo com Anne Porter, que morreu em 2011. Ela nunca tentou controlar o que escrevi. Acho que isso aconteceu porque ela adquiriu confiança no meu trabalho ao longo dos anos em que nos conhecemos. Escrevi uma biografia intelectual, não era escandalosa, e acho que ela tinha razão em acreditar em mim. Curiosamente, foi o envolvimento emocional de Fairfield Porter com outra mulher, e não com outro homem, o que mais ameaçou o casamento. Notei que, para ela, foi a parte mais dolorosa do livro.
Seu próximo projeto é uma biografia do pintor surrealista chileno Roberto Matta, projeto que lhe valeu uma fellowship este ano no Leon Levy Center for Biography, em Nova York. Como tem sido a interação com os herdeiros dele?
J.S. – Matta foi casado várias vezes e teve seis filhos, entre eles, o artista Gordon Matta-Clark. Tenho que lidar com vários herdeiros e ainda não encontrei todos. O meu foco é no pintor com reconhecimento internacional que foi também um escritor brilhante, um pensador, um intelectual público e ativista social. A família está ansiosa por ver a história contada e, até o momento, recebi garantias de apoio. A boa vontade da família, no caso de quem teve uma vida assim, é fundamental para continuar o trabalho.
Mesmo no caso de biografias autorizadas, a pesquisa pode levar a descobertas nem todas lisonjeiras. Lembra-se de um caso importante em que o biografado, diante de uma situação como essa, não criou obstáculo?
J.S. – O caso famoso que me ocorre é a biografia The Power Broker: Robert Moses and the Fall of New York, de Robert Caro. Quando publicada em 1974, Moses o grande planejador urbano que ajudou a definir Nova York até a década de 1960, estava vivo. Caro foi bastante crítico de Moses, e o livro, premiado com o Pulitzer, é considerado uma grande obra, referência do gênero biográfico.
Hermione Lee, biógrafa de Virginia Woolf, vai lançar a biografia da romancista e poeta Penelope Fitzgerald, morta em 2000. Lee contou que, durante a pesquisa, a certa altura, um dos filhos de Fitzgerald lhe disse: ‘Você roubou minha mãe’, expressando a angústia de ter uma pessoa de fora revirando a vida da família. Como vê esse papel do biógrafo?
J.S. – As famílias de figuras públicas, não importa se políticos, artistas, romancistas, sempre têm seus sentimentos não resolvidos sobre a pessoa que está sendo retratada. Mas a primeira responsabilidade do biógrafo é escrever a verdade sobre a pessoa cuja história vai contar. Na minha experiência, tratei parentes de biografados com respeito e também fui respeitado. Eles podem discordar do que escrevo e não espero mesmo que concordem com tudo. O mais importante, para os dois lados, é haver a confiança na integridade do biógrafo.
Um dos aspectos da polêmica em curso no Brasil é ter colocado alguns dos nossos maiores artistas da canção popular, vários deles censurados e presos durante a ditadura militar, contra escritores que querem preservar sua liberdade de pesquisar e publicar informação que pode ser documentada. O que pensa disso?
J.S. – Biografias não autorizadas são um território arriscado. A recusa de autorizar um projeto é o primeiro sinal da falta de confiança entre escritor e biografado ou seus herdeiros. Um motivo que me faz ficar longe de biografias não autorizadas é que as chances de sucesso no resultado final são menores. Mas repito: há vários tipos de biografia e, sem dúvida, precisamos que algumas sejam escritas sem a cooperação dos biografados.
Um comentário feito em meio ao debate no Brasil foi o fato de que não devemos esperar que artistas sejam figuras de referência em questões como liberdade constitucional. Concorda com isso?
J.S. – Matta, meu tema no momento, foi um grande artista criativo que nunca deixou de defender os direitos do indivíduo. Ainda assim, enquanto escrevo sobre ele, eu me preocupo com o direito de sua família à privacidade. O biógrafo tem que ser verdadeiro, mas, mesmo quando se debruça sobre a vida de um espírito livre como Matta, não deve perder de vista a consideração por herdeiros. O biógrafo tem que ser bom diplomata, além de bom escritor. A cada novo personagem, aparecem novos desafios. O biógrafo tem que ser honesto consigo mesmo e decidir se é capaz de percorrer o território que tem à frente. Na minha experiência, tem sido mais sensato trabalhar em harmonia com famílias, e não em oposição.
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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S. Paulo, em Nova York