O episódio envolvendo a invasão do Instituto Royal para o resgate de 178 cães da raça beagle, em São Roque, a 66 km de São Paulo, ao que tudo indica até agora gerou mais ruído e discussão sem sentido que oportunidade de reflexão sobre uma questão de enorme importância.
A invasão da unidade da empresa e retirada dos animais que serviam de cobaias para experimentos científicos veiculada de maneira um tanto sensacionalista pela mídia até agora só produziu dois blocos antagônicos: um favorável e outro contrário à operação.
A questão, no entanto, é mais complexa e não tem como ser encaminhada de forma promissora com apego, por exemplo, a certa ortodoxia legal, de um lado, e liberdade de ação ilimitada, de outro. Daí a necessidade de uma reflexão mais equilibrada e promissora sobre o caso.
A invasão do Instituto Royal pelos ambientalistas faz sentido de um ponto de vista, digamos, histórico. Mas a operação em si, independentemente de outras consequências, traz riscos que certa ingenuidade dos ambientalistas não considerou.
Vamos a cada uma delas.
Direito natural
A brutalidade e desamor com animais, especialmente os domésticos e em particular envolvendo cães, tratados pela mídia nos últimos tempos têm sensibilizado toda e qualquer pessoa com um mínimo de percepção e preocupação quanto aos direitos elementares que se deve ter com tudo o que vive: humanos e animais. Nos dois casos, no entanto, o noticiário da TV em horário nobre, e as páginas de jornais e revistas, têm demonstrado a crise de valores em que vivemos e as consequências amplas e complexas dessa situação em termos de violência, brutalidade e desamor.
Animais mutilados, arrastados, presos a carros e motocicletas como forma de punição, espancados como via de liberação de rancor, ódio e outras formas de transgressões patológicas certamente criaram, no conjunto da sociedade, um sentimento de impunidade em relação aos infratores. Sem falar dos odiosos rodeios de espetáculos grotestos, como as chamadas “festas de peão boiadeiro”, cópias precárias do que ocorre no Texas, nos Estados Unidos, e disseminadas pelo país como cogumelos que brotam em qualquer lugar.
Da mesma forma, os relatos de cães que aguardam fielmente pelo retorno de seus donos mortos e que jamais retornarão (caso de um mecânico e de um tratador, entre outros) sensibilizam e sugerem que os animais podem ser mais sensíveis e “generosos” que boa parte dos humanos.
Certamente esse tipo de procedimento esteve presente na decisão dos ambientalistas em invadir a sede do Instituto Royal e liberar os 178 beagles utilizados em experimentos científicos exatamente por serem dóceis e gentis no trato.
Os advogados do instituto alegam que a empresa tinha autorização legal para realizar pesquisas com os animais e que, portanto, os ambientalistas são raivosos, inconsequentes e especialmente criminosos, neste último caso por mais de uma razão. A verdade, no entanto, é que o fato de o Instituto Royal dispor de licença para pesquisa com os beagles é, certamente, uma situação necessária mas não suficiente – e exatamente neste ponto pode estar o núcleo fundamental de toda a questão.
Isso significa que o instituto, seguramente informado do inconformismo dos ambientalistas (nada disso ocorre da noite para o dia sem certa fermentação de ânimos), deveria ter tratado a questão mais cientificamente e, o que significa dizer com mais responsabilidade e eficiência.
E isso não aconteceu.
O Instituto Royal deveria ter convidado um grupo de representante dos ambientalistas, com participação do Ministério Público, para conhecer e discutir a situação dos animais.
E isso não aconteceu.
Os ambientalistas já haviam estimulado o Ministério Público a se pronunciar sobre a situação da pesquisa com os beagles, mas esse processo, como se sabe, é indesejavelmente lento, burocrático e, em boa parte dos casos, absolutamente frustrante. Então, se o Instituto Royal não teve procedimento devido (procedimento científico, pode se dizer) para lidar com o entorno social em sua sede de pesquisa com animais, é preciso que isso seja formalmente reconhecido e que o instituto seja responsabilizado por isso.
E, certamente, o mais importante que apenas a responsabilização do Instituto Royal por isso: que o reconhecimento dessa situação seja capaz de criar um ambiente novo e promissor em relação ao uso de animais como cobaias na produção de medicamentos para humanos.
Pode-se, como defendem alguns, dispensar inteiramente o uso de cobaias vivas nesse tipo de investigação científica?
A resposta, aqui, está muito longe de um puro “sim” ou “não”. É mais complexa e desafiadora. E exatamente por isso deve ser analisada num contexto mais amplo e sempre com a preocupação de evitar, de forma crescente, o uso dessas cobaias vivas.
As razões para isso são de diversas ordens e uma delas é o elementar direito natural de os animais poderem viver de forma digna, da mesma forma que os humanos, ainda que ambos, homens e animais, partilhem neste momento de um mundo violento, insensível e aparentemente sem muita perspectiva de mudança no futuro imediato.
História emblemática
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) liberou, semana passada, uma nota para a mídia condenando a invasão do Instituto Royal pelos ambientalistas e isso foi aproveitado pela empresa para se passar por vítima de truculência por parte dos ambientalistas.
Na verdade, a nota da SBPC não foi uma iniciativa muito inteligente, porque foi unilateral, restrita e para ser claro: ortodoxa e formal. Para posicionar-se devidamente num caso como este, a respeitabilíssima SBPC teria a obrigação de fazer uma reflexão mais ampla e colocar a questão na dimensão necessária.
E isso não aconteceu.
Quanto aos ambientalistas, invadindo o laboratório como fizeram, poderiam (ou podem) ter sido vítima de contaminações de que, provavelmente, sequer suspeitaram quando se decidiram pela iniciativa. Essa é uma situação ameaçadora que não pode ser desconsiderada nem em relação ao grupo invasor, nem em termos de saúde pública.
Também o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Marco Antonio Raupp (ex-presidente da SBPC) teve uma fala aparentemente mal humorada com jornalistas, quando se referiu a esse acontecimento e condenou de forma unilateral a invasão dos ambientalistas para liberar os 178 beagles cobaia do Instituto Royal. O ministro Raupp, uma pessoa afável, brilhante e com julgamento criterioso e por isso mesmo equilibrado (eu o conheço há tempos e convivi profissionalmente com ele tanto no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe, quanto na própria SBPC), soou autoritário e excludente em sua fala.
E isso foi uma grande pena.
O ministro disse que o momento de se debater o uso ou não de animais como cobaias em laboratórios já havia ficado para trás e com isso desqualificou sumariamente os ambientalistas.
Os fatos, no entanto, em casos como esse, não são definitivos da mesma forma que, em ciência, as coisas também podem não ser definitivas. Uma teoria científica, por exemplo, só pode ser aceita se for refutável – e isso significa que o destino de uma teoria científica é literalmente o de viver na corda bamba.
Numa noite da semana passada, o âncora de um canal de TV aberta e popular se meteu a comentar o caso da invasão do Instituto Royal, aparentemente encorajado pela sumária nota liberada pela SBPC. O fato, no entanto, é que o pobre homem mal sabia do que falava, em um discurso superficial, obscuro, desinformado e por isso mesmo com todo potencial para aumentar a confusão sem lançar uma única semente com possibilidade de frutificar uma perspectiva mais inteligente, necessária e mais bem fundamentada, envolvendo todos os protagonistas de uma história emblemática como a liberação dos 178 pequenos beagles do Instituto Royal em São Roque.
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Ulisses Capozzoli, jornalista especializado em divulgação científica, é mestre e doutor em ciências pela Universidade de São Paulo e editor de Scientific American Brasil