Enquanto está matéria era escrita, na tarde deste dia 23 de outubro, a Câmara dos Deputados debatia a urgência do projeto de lei que libera biografias não autorizadas no Brasil. E, mais uma vez, o plenário adiou a votação da proposta do deputado Newton Lima (PT-SP), que prevê a publicação das obras, independentemente da autorização da pessoa biografada ou de familiares, e está entre os pontos do projeto de lei de reforma do Código Civil. Pelas regras atuais, o código autoriza a publicação de material biográfico, mas somente se houver permissão prévia.
O objetivo das discussões dos parlamentares era garantir que seja reconhecido o caráter urgente do projeto e que a votação ocorresse nos próximos dias, já que, na semana que vem, os deputados voltarão atenções totais ao Marco Civil da Internet.
A importância da pauta no Congresso aumentou desde que a autorização para a publicação de biografias se tornou debate público neste mês. Essencialmente, as discussões ganharam corpo quando o grupo Procure Saber, encabeçado ou apoiado por artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso e Roberto Carlos, colocou questões como direito à privacidade e divisão de lucros entre biografados e biógrafos no centro da polêmica.
De outro lado, jornalistas, escritores e artistas, caso de Alceu Valença, se posicionaram pela garantia do acesso à informação e estranharam os argumentos de personalidades públicas – defensoras históricas da liberdade de expressão – alinhadas na trincheira da censura prévia.
Em entrevista exclusiva a este NR, o vencedor do Prêmio Jabuti deste ano na categoria biografia, Mário Magalhães, com o livro Marighella: O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, sobre o guerrilheiro Carlos Marighella, se manifesta a respeito da polêmica. Na conversa, ele avalia várias questões, como a postura obscurantista do Procure Saber, a relação público/privado que envolve personagens históricos, o que o jornalismo pode tirar da discussão e afirma que biografia jornalística não é entretenimento.
Na questão das biografias, a ação de restringir a produção tem a ver com controle econômico e político? A preocupação com ataques à honra seria só um disfarce?
Mário Magalhães– Eu seria muito presunçoso se afirmasse “o que está por trás…” O certo é que o grupo Procure Saber defende a manutenção de uma legislação obscurantista e antidemocrática, que impede relatos jornalísticos e historiográficos sem autorização dos retratados ou herdeiros.
Sobre os ganhos pretendidos pelos familiares dos biografados, a discussão a respeito dos valores financeiros é forte. Por quê?
M.M.– Biografia jornalística é reportagem. A reportagem é um gênero do jornalismo. O pagamento a biografados subverte o conceito de biografia independente e não autorizada. Como pagar a um torturador uma parcela da receita obtida com um livro contando crimes? O padrão das biografias, como no meu caso, é distinto: perde-se muito mais dinheiro do que se ganha. Se os biografados receberem por livros independentes sobre eles, o senador José Sarney também receberá pelos perfis que a imprensa lhe dedica? Biografia jornalística não é entretenimento, showbiz.
Em contextos de regimes democráticos consolidados, se espera que a lei garanta que autores possam biografar sem autorização prévia e que respondam civil e criminalmente em caso de violações. A tentativa de restrição tem a ver com a construção complicada da democracia brasileira e a sombra de autoritarismo?
M.M.– Embora o Código Civil seja de 2002, parece evidente que ele incorpora vestígios do autoritarismo da ditadura encerrada em 1985. É inacreditável que muitas biografias e perfis publicados durante a ditadura (1964-85) hoje poderiam ser barrados, com base em uma lei do tempo democrático.
Quando uma pessoa tem vida pública intensa e é reconhecida por ela, é natural que a privacidade tenha limites diferentes de quem vive no anonimato, principalmente se ela, a personalidade pública, interfere fortemente na história da sociedade a qual pertence. Por que isso ainda não está consagrado entre a classe artística no Brasil? Ela não deveria se preocupar somente com a publicação de fatos mentirosos?
M.M.– É uma boa pergunta, a ser feita a quem defende exclusividade de biografias chapas-brancas. De fato, eu não tenho direito de escrever sobre eventuais amantes de uma vizinha, mas seria intelectualmente desonesto se omitisse o vínculo entre D. Pedro I e a Marquesa de Santos. Ainda mais porque ela influenciou o primeiro reinado. A relação privada teve consequências públicas, atingiu a vida dos cidadãos.
Como explicar nomes históricos que lutaram em defesa da liberdade de expressão no País à frente de uma investida que quer liberdade apenas a elogios?
M.M.– A defesa da censura prévia, assumida por certos artistas, é legítima, embora eu não concorde com eles, mas a adesão de certos gigantes da nossa cultura à tese autoritária é mesmo surpreendente.
Você vê essa situação como algo isolado ou certa tendência ao controle da informação na atualidade?
M.M.– No caso específico, é uma iniciativa muito isolada, como se viu pela reação de outros artistas e de intelectuais dos mais diversos matizes ideológicos. Do ponto de vista histórico, os poderosos nunca gostaram de liberdade de expressão e de livre circulação de ideias. O poder não é só econômico e político, mas também cultural, esportivo…
Até para o trabalho acadêmico restrições ao direito de abordar a vida de personagens históricos é perigoso?
M.M.– Restrições devem existir e já estão contempladas na lei, mas a legislação em vigor também atinge a produção acadêmica. Invasão criminosa de privacidade é isso mesmo: crime. Porém, o que isso tem a ver com censura prévia?
Por outro lado, o jornalismo que calunia, difama, injuria, com interesses, por exemplo, políticos, contribui para a existência de uma proposta rasa como essa, que coloca as pretensões financeiras e a vaidade individual acima da história de um País. Como lutar contra isso?
M.M.– Há muitas maneiras, tanto rejeitando audiência a esse tipo de jornalismo, quanto exigindo punição judicial mais célere a jornalistas que cometem crimes.
Sobre a profissão de jornalista, o que se pode esperar de evolução com esse debate? O que a categoria e as empresas jornalísticas podem fazer para contribuir, além da produção, para a relação com a história e os biografados?
M.M.– Há dois movimentos em curso. Por um lado, cada vez mais jornalistas sonham em se dedicar a relatos de fôlego, como opção à frustração com o cotidiano do trabalho. Por outro, muitos desistem de escrever biografias, devido à censura prévia permitida pelo marco legal.
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Moriti Neto, jornalista, repórter e editor-assistente do NR