Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Homenagem a Gildo Macedo Lacerda

“Dizem (…) que [Creonte] proclamou a todos os tebanos a interdição de sepultarem ou sequer chorarem o desventurado Polinices: sem uma lágrima, o cadáver insepulto irá deliciar as aves carniceiras que hão de banquetear-se no feliz achado.” (Sófocles, Antígona, linhas 30-34).

Assim explica Antígona à sua irmã Ismene o que aconteceu a um de seus irmãos, Polinices. Na tragédia escrita por Sófocles no século V a.C., os irmãos Polinices e Etéocles morrem em uma guerra civil, este guiando o exército tebano, aquele o de Argos. Julgado traidor pelo tirano Creonte, que assume o poder de Tebas, Polinices deve permanecer insepulto: nas palavras de Creonte, “a Polinices, (…) quanto a ele foi ditado que cidadão algum se atreva a distingui-lo com ritos fúnebres ou comiseração; fique insepulto o seu cadáver e o devorem cães e aves carniceiras em nojenta cena.” (Sófocles, Antígona, linhas 225-235).

Neste mês de outubro de 2013, faz 40 anos que meu pai, Gildo Macedo Lacerda, foi torturado até a morte sob o governo ditatorial brasileiro. 40 anos atrás, a irmã mais velha de Gildo, Márcia Lacerda Alves, via o Jornal Nacional anunciar a morte de seu irmão em um suposto tiroteio no centro da cidade de Recife, na esquina da Avenida Caxangá com a Rua General Polidoro. Segundo a versão mentirosa oficial, Gildo, que havia sido preso em 22 de outubro de 1973, e José Carlos Matta Machado (também preso) delataram um encontro que aconteceria entre eles e um terceiro companheiro de codinome Antônio. Este, percebendo a emboscada, atirou em Gildo, que morreu no local. Poucos dias depois, minha mãe, então presa em Salvador, receberia a notícia da morte de seu marido pelo capelão do Exército, que lhe entregou um jornal com a notícia.

A farsa da versão oficial, o “Teatro da Caxangá” ou a prática do “Teatro dos Mortos”, além de encobrir os bárbaros assassinatos sob tortura de Gildo e José Carlos, tentou encobrir o assassinato de Paulo Stuart Wright ao se referir a “Antônio”, que teria conseguido fugir. Essas informações, eu sei de cor há nem sei quanto tempo. Na tentativa de reconstruir a história de Gildo, decorei as palavras que narram sua morte – ainda que sua morte tenha de fato ocorrido na tortura a que foi submetido. O que não consigo por nada gravar em minha memória é o nome das valas e dos cemitérios por onde passou o corpo morto de Gildo. Por meio de pesquisas no Dops/PE, o Grupo Tortura Nunca Mais em Recife (e particularmente uma pessoa: Amparo) descobriu em 1991 que o corpo de Gildo foi necropsiado no Necrotério Público de Santo Amaro, em Recife, para onde foi encaminhado pelo delegado Jorge Tasso de Souza; o corpo ficou inicialmente em caixão lacrado e foi enterrado como indigente no Cemitério da Várzea, em Recife. Os restos mortais de Gildo foram, em seguida, transferidos para uma vala comum no “Buraco do Inferno”, e, em 1986, para outra vala comum (com ossadas de pessoas mortas desde 1945), no Cemitério Parque das Flores – essa última vala, numa triste alusão à tragédia de Sófocles, uma vala a céu aberto.

Dever imemorial

Antígona não cede à irmã Ismene, recusa-se a obedecer o édito do tirano Creonte, e realiza os ritos jogando sobre seu irmão insepulto uma fina camada de terra com suas próprias mãos, porque para ela as leis do tirano ferem as leis dos deuses, as leis do governo tirano são leis injustas e, por isso, devem ser desobedecidas. Diz ela:

“Zeus não foi arauto delas para mim,/Nem essas leis são as ditadas entre os homens/ pela Justiça, (…);/ e não me pareceu que tuas determinações tivessem força/ para impor aos mortais até a obrigação/ de transgredir normas divinas, não escritas,/inevitáveis; não é de hoje, não é de ontem,/é desde os tempos mais remotos que elas vigem,/ sem que ninguém possa dizer quando surgiram.”(Sófocles, Antígona, linhas 511-520, grifo meu).

Contra o tirano Creonte, que define a justiça como as leis particulares instituídas por seu regime particular (como os Atos institucionais de nossa ditadura), Antígona considera que a justiça é universal e atemporal. Há 25 séculos a Filosofia debate a questão da Justiça. Em linhas muito gerais pode-se dizer que há aqueles que afirmam a Justiça como uma verdade universal e atemporal, derivada dos deuses, de Deus ou da razão humana – a Justiça, nesse caso, porta uma necessidade, ela deve valer em qualquer tempo ou lugar; e, de outro lado, há os filósofos que consideram que Justiça é produto da convenção humana e, como tal, é sempre contingente e particular, já que enraizada em governos particulares. Mas o fato é que quer concebamos a Justiça como uma verdade atemporal e universal, quer a concebamos como o efeito de leis particulares, mesmo entre os defensores de uma justiça que só existe por consenso, que é contingente e produto de seu tempo particular, é muito difícil dar razão para uma lei como a de Creonte; mesmo para quem defende a justiça como pura convenção, é difícil explicar uma lei que obriga a deixar um irmão insepulto, ou uma lei que justifica a prisão e morte arbitrária de pessoas que se opõem ao regime que está no poder. Porque como diz o adivinho Tirésias, ao advertir o tirano Creonte, deixar que um morto jaza insepulto é matá-lo novamente: “Não firas um cadáver!” – exclama Tirésias, e questiona: “Matar de novo um morto é prova de coragem?” (Sófocles, Antígona, linhas 1141-1142).

Recusar os ritos fúnebres a uma pessoa não é apenas uma injustiça, é uma monstruosidade, é nos retirar nossa humanidade, aquilo que nos distingue enquanto seres humanos, é desumano, é inumano.

Na primeira aparição do coro na Antígona de Sófocles, o coro exalta a capacidade do homem – “Há muitas maravilhas, mas nenhuma/ é tão maravilhosa quanto o homem./ (…)/ homem de engenho e arte inesgotáveis. /(…)/ Soube aprender sozinho a usar a fala/ e o pensamento mais veloz que o vento (…)” (Sófocles, Antígona, linhas 385-405). Na versão da Antígona feita pelo dramaturgo alemão Bertold Brecht, e que se inicia com um prólogo no qual duas irmãs veem seu irmão desertor assassinado por um soldado da SS de Hitler, durante a Segunda Guerra Mundial, Brecht mostra quão longe pode ir o homem quando não reconhece os limites da humanidade e, nas palavras dele, “pisa implacavelmente sobre os demais”, quando impõe uma morte na morte, negando os ritos fúnebres a um morto, negando que os familiares pranteiem o seu ente querido, negando o direito humano de dar um túmulo a um pai, a um marido, a um filho, a um irmão; o direito humano de seguir em frente depois de uma morte inexplicável, incompreensível, seguir em frente, digo, sem o peso insuportável da responsabilidade de não ter dado ao seu parente um enterro digno. Quando o homem capaz de mil maravilhas, nega ao seu semelhante a possibilidade de ser humano e cumprir os ritos fúnebres como um dever para com seu familiar, ele nega a própria humanidade; como diz Brecht: [cito] “O homem não leva em conta o que é realmente humano, e assim, converte-se ele mesmo em um monstro prodigioso” (Brecht – Antigona, p.87).

Por isso, em homenagem ao meu pai, avô de meus filhos, marido de minha mãe, que ficou viúva aos 22 anos, faço um apelo à sociedade brasileira: deixem-nos enterrar nossos mortos!

O que a ditadura brasileira fez não é apenas uma injustiça, é uma monstruosidade. Deixem-nos enterrar nossos mortos, prantear nossos pais, filhos, maridos, amigos, companheiros. Deixem-nos cumprir o dever imemorial e humano de enterrar nossos entes queridos. É o mínimo que podemos fazer por pessoas que lutaram para que vivêssemos em uma democracia, com direito de fazer e dizer o que julgamos melhor, desde que dentro das leis democráticas instituídas.

Luto necessário

Queremos que conste a causa mortis no atestado de óbito de Gildo Lacerda, porque assim ficará posto que ele morreu pelas mãos de um Estado ditatorial e jamais traindo seus companheiros, como a farsa da versão oficial quer colocar.

Queremos que se identifique os restos mortais de Gildo, porque assim poderemos fazer os ritos que seus pais não puderam e dar a meu pai o mínimo que se poderia dar diante do que ele nos deu em nome da democracia – sua vida.

Queremos que todos os arquivos da ditadura sejam abertos – e ainda há arquivos fechados, como revelou a Folha de S.Paulo em 21 de outubro de 2013 ao relatar a microfilmagem que o serviço de informações da Marinha, o Cenimar, fez entre 1972 e 1974. O nome de Gildo constava de uma lista de militantes e dirigentes de organizações de esquerda que deveriam ser presos e assassinados mostrada ao líder camponês Manoel Conceição, em 1972, quando ele estava preso no Cenimar e no DOI-Codi do Rio de Janeiro. Queremos que todos esses arquivos possam ser livremente acessados; queremos entender por que Gildo foi morto – porque não nos basta saber que ele lutava contra a ditadura, queremos reconstruir, reconstituir sua vida.

Deixem-nos enterrar nossos mortos e realizar o luto necessário. Deixem-nos enterrar nossos mortos para dar significado a sua vida e esclarecer para toda a sociedade este ponto obscuro de nossa história.

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Tessa Moura Lacerda é professora de filosofia da USP