Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os meus amigos Marcos de Castro e Fernando Gabeira

O dia 5 de setembro de 1969 caiu numa sexta-feira calorenta no Rio de Janeiro. Desde a véspera, o Brasil acompanhava o desenrolar da mais espetacular ação, até então, contra a ditadura militar, sob o comando do triunvirato composto pelos ministros do Exército, Marinha e Aeronáutica: o embaixador americano Charles Burke Elbrick fora sequestrado por um grupo de 12 militantes da resistência ao regime de força. Eles exigiam, em troca da liberdade do embaixador, a soltura de 15 presos políticos, que sofriam torturas e as mais degradantes sevícias nos porões de quartéis, do DOPS e do DOI-Codi, órgãos policiais que agiam sem piedade no trato dos que caíssem em suas garras.

Em um manifesto reproduzido pela imprensa e lido nos principais jornais radiofônicos e televisivos, os sequestradores justificavam a violência contra o representante no Brasil da nação mais poderosa do mundo, como um ato extremo para libertar os companheiros de luta (entre eles, os líderes estudantis Vladimir Palmeira e José Dirceu), que deveriam ser enviados para fora do país, em um avião especial, até a Argélia, Chile ou México – onde lhes seja concedido asilo político.

Regime de força

Eu trabalhava na editoria de Esportes do Jornal do Brasil, e às sextas-feiras, após o fechamento das quatro páginas, por volta de 22h30, seguia na companhia de dois companheiros de redação, João Areosa, sub-editor da área (o editor era Oldemário Touguinhó), e do repórter José Trajano, ao encontro do amigo Marcos de Castro, copidesque no mesmo JB, que nos aguardava ou no Restaurante Lamas, no Flamengo, ou em seu apartamento, em Laranjeiras, próximo à Praça São Salvador, para um relax, regado a um “uisquinho”, que ninguém é de ferro.

Fora uma semana rotineiramente agitada na seção de esportes. No sábado teria início o Torneio Roberto Gomes Pedrosa, reunindo 17 times, com o confronto, à noite, no Maracanã, entre Flamengo e Portuguesa dos Desportos. A rodada prosseguiria no domingo com os jogos de maior interesse dos cariocas: Fluminense (sob a batuta de Telê Santana) x Cruzeiro; Botafogo x Inter (RS) e Coritiba x Vasco da Gama.

Na página anterior, ao lado da coluna “Na Grande Área”, de Armando Nogueira, a notícia de maior destaque anunciava a partida entre Polônia e Alemanha, pelas eliminatórias da Copa do Mundo, no ano seguinte, no México.

Mas a semana se encerrava excepcionalmente excitante com a notícia do sequestro de Elbrick. Antes de deixarmos a sede do JB, na Avenida Rio Branco, 120, eu passara na oficina para conferir se estava tudo bem com as páginas de esportes. Aproveitei para dar uma espiada na primeira página. A manchete anunciava: “Conselho de Segurança examina situação (o sequestro) esta manhã”, com quatro ilustrações: duas reproduziam cartas manuscritas pelo embaixador, dirigidas à esposa, ambas iniciando com um “Dearest (nome ilegível)”: na primeira, encontrada num vão dos bancos da Igreja da Glória, pedia-lhe que se mantivesse calma, que estava sendo bem tratado; na segunda, deixada numa lata de lixo no Supermercado Disco, no Leblon, Elbrick declarava-se confiante de que tudo acabaria bem, desde que as autoridades brasileiras concordassem com as exigências de seus sequestradores.

Nossos bate-papos com Marcos entravam madrugada adentro, e não raro, nos despedíamos já dia claro, cada qual rumo às suas moradias: Trajano, na Tijuca, Areosa, na Gávea e eu, em Copacabana. Naquela sexta-feira, então, assunto é que não faltaria – do futebol ao momento político. Marcos, Areosa e eu éramos rubro-negros. Nesse ponto, Trajano destoava do quarteto como um ardoroso torcedor do América, e responsável pelo noticiário do clube, que naquela edição que acabáramos de fechar, merecera figurar no noticiário com a contratação do goleiro Jonas, adquirido ao Bonsucesso por NCR$ 120 mil – uma pequena fortuna.

E foi com essas ideias na cabeça que chegamos ao apartamento de Marcos para dar início à noitada etílica. Acionamos a campanhia e quem nos atendeu foi Helga, sua mulher, fisionomia alarmada, a voz e mãos trêmulas. Ela abriu espaço para que entrássemos e nos deparamos no interior com dois estranhos, trajando terno escuro e gravata. Um deles estava diante de uma grande estante onde Marcos abrigava seus livros, organizadamente. Ele lia os títulos nas lombadas e vez ou outra folheava um deles como um pesquisador em busca da chave de um enigma. O outro, sentado numa cadeira de balanço, na pequena varanda, extensão da sala, dirigia-nos o olhar fixamente, sem alterar um músculo da expressão de poucos amigos.

Helga nos esclareceu: “São policiais do DOPS e estão esperando o Marcos para levá-lo.” O marido saíra, meia hora antes, para uma rápida visita a um parente nas redondezas, e logo estaria de volta. Antes de chegarmos, Helga havia dito aos homens que nós éramos esperados, os três igualmente jornalistas, trabalhávamos no JB, e que a reunião entre nós era um hábito entre amigos às sextas-feiras.

Sentamo-nos num sofá e Helga numa poltrona. Poucas palavras trocamos, exceto para acalmá-la quando dizíamos que nada havia a temer, pois quem conhecia seu marido sabia que sua vida se resumia à família, e ao trabalho no jornal. De fato, Marcos jamais participaria de aventuras que pudessem colocar em risco um fio de cabelo da esposa e do casal de filhos, Emanuel e Luiza, de 3 e 4 anos.

Sabíamos todos que suas convicções religiosas afloravam a sensibilidade humana despertada pelas lições evangélicas de amor ao próximo. (Duas décadas depois, Marcos aplaudiria os sermões e ensaios literários do teólogo Leonardo Boff, contendo os fundamentos da Teologia da Libertação – “os cristãos já não admitem um cristianismo que não seja político, quer dizer, que não busque a justiça, o amor ao próximo, autenticamente vivido, como se vive o amor a Deus” –, que causavam urticárias nos próceres da hierarquia católica do Vaticano).

Marcos me desaprovava com veemência, sem falsa modéstia, quando eu dizia ser ele um pensador católico à altura de Alceu Amoroso Lima, colaborador do JB, e que não economizava adjetivos de reprovação ao regime de força instalado no país. Na época, outro pensador católico, Gustavo Corção, em O Globo, contratacava, emitindo conceitos medievais sobre política e religião. Um dos maiores admiradores de Corção, que ajudava a propagar suas ideias, também escrevia n’O Globo: Nelson Rodrigues.

Casarão identificado

Os ruídos do elevador chegando ao nono andar, e da chave destrancando a porta anunciam a chegada de Marcos. Os dois homens redobram a atenção. Ao nos ver, Marcos abre o sorriso de boas-vindas, mas logo percebe a aflição de Helga, e então se depara com os dois estranhos. Um deles ordena que ele providencie utensílios pessoais em uma pequena valise, o que significa que será levado imediatamente, já passava de 23h, para uma viagem, sabe-se lá para onde e por quanto tempo.

Quatro décadas depois, ainda tenho vivas na memória a amarga cena de despedida de Helga e as nossas através de olhares de encorajamento, mas sem palavras. Lá se foi Marcos escoltado pelos dois brutamontes (mais tarde, soubemos que outros dois aguardavam na rua, em frente ao prédio, prontos para uma eventual resistência…). Ainda perplexos, nossa primeira providência foi ligar para Alberto Dines, o editor-chefe do JB, e Carlos Lemos, secretário de redação, para passar-lhes a informação: Marcos fora levado por agentes do DOPS e… O resto está relatado em sua comovente crônica intitulada “Satanás rindo“, publicada n’O Globo e reproduzida no Blog do (jornalista Ricardo) Noblat, no Globo Online.

Marcos foi libertado uma semana depois, aos frangalhos, após ter sofrido o diabo nas mãos de carrascos. O motivo de sua prisão, que ele omite por ética e cautela, mas que ouso revelar aqui, agora, foi o fato de ter sido avalista de um companheiro de redação, Fernando Gabeira, em um empréstimo numa agência bancária, em frente ao JB, na Rio Branco, cerca de seis meses antes do episódio envolvendo o embaixador Elbrick. Gabeira era um dos 12 sequestradores.

Todos foram identificados, e o cativeiro de Elbrick, num casarão em Santa Teresa, localizado, logo no início das investigações. E até que os milicos e policiais se convencessem de sua inocência no sequestro, o pobre Marcos suportou as maiores humilhações físicas e morais, antes de ser devolvido ao seio de sua família.

Depoimento entalado

Corta para dez anos depois: Marcos, eu e mais uma centena de pessoas, estamos no Aeroporto do Galeão, recepcionando Gabeira, após o banimento. Fora libertado, em 1970, na mesma tática guerrilheira de troca de prisioneiros políticos por um embaixador sequestrado, dessa vez, o suíço Giovanni Enrico Bucher.

Ali estava o velho amigo, cabelos desgrenhados, sorriso incontido, trajando um conjunto branco sobre uma camisa de malha esportiva, erguido nos ombros de pessoas que talvez ele nem soubesse quem eram. Estendia as mãos para tocar as que conseguissem se aproximar mais, que o aplaudiam e gritavam viva a liberdade, abaixo a ditadura! Distanciados da turba, eu e Marcos observávamos a encenação comovidos com o retorno de Gabeira ao solo pátrio, após sofrer o diabo nos tempos em que esteve enjaulado em prisões no Rio e São Paulo e depois, nos dez anos de banimento – pena maior impossível.

Surge, então, no cenário nacional um outro Fernando Gabeira, “com a cabeça cheia de temas mais avançados para o Brasil, como sexologia, ecologia, drogas, feminismo” (IstoÉ / setembro de 2006), que todos passam a conhecer pelos bem escritos livros, cerca de uma dezena, em que relata os episódios do sequestro – “O limite entre o ridículo e o efeito foi muito estreito” – e traça os ideais de uma política em que democracia é apenas um dos itens a ser exigido. .

Este novo Gabeira vai merecer páginas e mais páginas na imprensa para divulgar a sua “política do corpo”. Sua presença nas praias mais badaladas de Ipanema numa sumária sunguinha terá mais repercussão do que todo o conjunto de seus brilhantes ideais políticos/sociológicos .

Lamentei que em meio a tudo isso, jamais tenha lhe sobrado um minutinho para se dirigir ao ex-bom companheiro de redação, o grande Marcos de Castro, para dois dedos de prosa, onde poderia caber uma frase de lamentação pelos transtornos, involuntários, é verdade, causados a ele e à família, agora acrescida de mais dois filhos, Lúcio e Mateus.

Ele merecia. Ele merece.

Como velho amigo de ambos é que assino este depoimento/desabafo, entalado na garganta há 34 anos.

Mão estendida

João (Duarte) Areosa, a quem eu me dirigia, e vice-versa, como “poltrão”, morreu há cerca de três anos, sem ter recebido um centavo da indenização merecida por anos de trabalho na TV Manchete (leia-se massa falida das famílias Bloch/Kapeller).

José Trajano (dos Reis Quinhões) é uma das figuras mais simpáticas e competentes do jornalismo esportivo televisivo, em atividade na ESPN Brasil.

E eu, modestamente, após quase 40 anos vivendo no Rio, retornei à minha cidade natal, Juiz de Fora, onde um amigo de juventude, Fernando Gabeira, me estendeu as mãos nos primeiros passos no jornalismo, e não parei mais.

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Ivanir Yazbeck é jornalista (JB, O Globo, O Dia e Extra) aposentado e escritor, autor de 12 livros, o último, O Real Itamar (Editora Gutenberg/BH/2011), biografia do presidente da República Itamar Augusto Cautiero Franco