O modelo tradicional da indústria jornalística enfrenta um duplo desafio diante do novo ambiente comunicacional e das possibilidades abertas pela troca de informações no mundo digital. De um lado, a internet dessacraliza o papel do jornalista como intermediário exclusivo entre os acontecimentos e o público. Indivíduos conectados podem não apenas consumir informação em diferentes plataformas como se expressar livremente na web. Os códigos que asseguravam às empresas de comunicação a manutenção de um lugar de fala autorizado parecem, portanto, menos estáveis no cenário de transformações tecnológicas que permitem aos cidadãos novos modos de interação. O segundo desafio se relaciona com a crise de representatividade do chamado jornalismo hegemônico.
A cobertura midiática das manifestações populares de junho e julho e, mais recentemente, da greve de professores da rede pública no Rio de Janeiro, desconstrói a ideia presente no senso comum de que a imprensa atua permanentemente em defesa da coletividade, não se subordinando a nenhum outro interesse que não seja a verdade. A capa condenatória de O Globo “Lei mais dura leva 70 vândalos para presídios” (17/10/2013), objeto de análise em vários artigos deste Observatório, é ilustrativa da fragilidade dessas representações que forneceram historicamente as condições de aceitabilidade do discurso jornalístico.
Atitude antidemocrática
O contraponto crítico dos enunciados da imprensa tradicional sobre os protestos apareceu com vigor ao longo dos últimos quatro meses nas redes sociais. Munidos de dispositivos móveis, os coletivos de comunicação ganharam visibilidade acompanhando de perto os eventos. Em que pesem a falta de contextualização dos eventos, transmitidos ao vivo, sem edição – e, portanto, sem mediação jornalística – e a baixa qualidade das imagens, os conteúdos postados na rede contribuíram e permanecem sendo úteis para denunciar os abusos policiais e a violação de direitos humanos na repressão aos manifestantes. Politicamente, os midialivristas põem em evidência a discussão sobre a concentração da propriedade dos veículos de imprensa no Brasil. O debate sobre a democratização da comunicação, uma agenda urgente para o país, requer, no entanto, maturidade e atitude responsável para não esbarrarmos em ações irrefletidas que reproduzem apenas ódio e intolerância, combustíveis de projetos reacionários e conservadores incompatíveis com um ambiente plural e democrático a que aspiramos.
Assim, importa pensar a mídia participativa e cidadã não em oposição, mas como alternativa aos enunciados de uma mídia classificada como hegemônica. As críticas à atuação das organizações jornalísticas são necessárias e fazem parte do exercício cotidiano por uma sociedade mais justa, mas não devem justificar atos de hostilidade ou mesmo agressão contra os profissionais desses veículos, como vêm ocorrendo com frequência perigosa nos últimos protestos. Sylvia Moretzsohn no artigo “A censura em nome da liberdade“, publicado neste Observatório (20/08/2013), indaga: “É possível afirmar a luta pela democratização da comunicação quando se discrimina quem pode e quem não pode trabalhar numa cobertura?” Quem tolera tais episódios acaba por reproduzir a mesma atitude antidemocrática.
Direitos humanos e questões sociais
Outras formas alternativas de produção jornalística na perspectiva da comunicação como direito e não simplesmente como negócio comercial começam a ganhar espaço na web. São projetos de reportagens especiais viabilizados financeiramente a partir de fundos arrecadados de forma coletiva na internet. O modelo de crowdfunding (financiamento coletivo) tenta superar o duplo desafio apontado no início do artigo: a reconfiguração do modelo tradicional de negócios da indústria jornalística no contexto das novas tecnologias e a crise de representatividade dos veículos tradicionais ou corporativos. Para fugir da dependência dos grandes anunciantes, iniciativas da Agência Pública (http://www.apublica.org/), Repórter Brasil (http://reporterbrasil.org.br/) e Viomundo (http://www.viomundo.com.br/), dentre outras, buscam materializar a ideia de um jornalismo independente, sem fins lucrativos, através de uma rede de colaboradores na internet.
A publicidade estatal ou proveniente do capital privado sempre exerceu influência sobre o conteúdo noticioso, ceifando pautas que contrariassem interesses políticos e econômicos de grupos dominantes na sociedade. Papel custa caro, e espaços de jornais e revistas são ocupados por anúncios em detrimento de boas estórias. Enquanto cadernos são preenchidos por propaganda de projetos imobiliários, financiados por “gente graúda”, é salutar o primeiro projeto de jornalismo financiado coletivamente pela Repórter Brasil, que teve o objetivo de ouvir os moradores expulsos e conhecer as formas de resistência ao processo de gentrificação no centro de São Paulo, marcado pela hipervalorização dos imóveis. A investigação jornalística (http://reporterbrasil.org.br/gentrificacao/) foi coordenada pela jornalista Sabrina Duran.
Do mesmo modo, a Agência Pública está distribuindo 12 bolsas, cada uma no valor de R$ 6 mil, com propostas de reportagem enviadas por jornalistas de todo o país. Os organizadores arrecadaram cerca de R$ 60 mil de 808 doadores, que escolheram as pautas por meio de uma das plataformas de financiamento coletivo disponíveis na rede. Um outro projeto de bolsas da Pública resultou no vídeo Severinas (http://vimeo.com/73309361) sobre a situação das mulheres que recebem o Bolsa Família no interior do Piauí. Direitos humanos e questões sociais norteiam a pauta da agência de jornalismo. Não há propriamente uma mudança de paradigma naquilo que deveria ser o papel do jornalismo na sociedade. A novidade está no suporte.
O “jornalismo sentado”
O jornalismo experimenta um processo já conhecido em outro ramo de atividade econômico-cultural. Há pouco mais de uma década, artistas começaram a perceber na internet a chance de viabilizar financeiramente seus discos sem passar pela cadeia produtiva tradicional da indústria fonográfica. O público escolhia quanto pagar para ter acesso às músicas de seus ídolos. As grandes gravadoras viam enfraquecido o seu papel de intermediação entre o polo produtor e a instância da recepção. Para os artistas, o novo ambiente comunicacional digital conferia autonomia e independência diante do poder de mercado.
A prática do jornalismo colaborativo, conforme mencionamos acima, tem diferenças agudas em relação ao chamado jornalismo participativo, ou seja, canais de interação limitados e com viés mercadológico das empresas, como Eu Repórter (O Globo) e Você Repórter (Terra), para ficar apenas nestes dois exemplos. É interessante notar as marcas distintivas e as estratégias de autorreferencialidade das corporações midiáticas que buscam assegurar para si a manutenção de um lugar de fala autorizado no ambiente de convergência tecnológica – o documento “Princípios editoriais das Organizações Globo” é emblemático da construção desse discurso.
A formulação de projetos alternativos de reportagem na web também desmonta certo preconceito em relação ao impacto negativo da internet no jornalismo, especialmente o efeito de comodismo do profissional, traduzido na ideia do “jornalismo sentado” ou do “jornalismo Ctrl C + Ctrl V”. Experiências apontadas na era docrowdfunding mostram a importância da plataforma, mas mantendo a boa e velha técnica de “gastar sola do sapato” para o trabalho de campo.
Desafios pós-manifestações
A experiência no mercado jornalístico está em curso, ainda sem prognóstico claro sobre a viabilidade desse modelo de gestão em longo prazo. O jornalismo sofre os impactos de um ambiente de desintermediação, mas a análise sobre os fenômenos requer prudência: se não devemos celebrar acriticamente, sem levar em conta as limitações desse processo, tampouco podemos deixar de reconhecer a validade da tentativa de produção e circulação da informação fora dos limites impostos pelo mercado.
Se pensarmos que as manifestações tendem a se tornar intermitentes até a Copa do Mundo de 2014, realizadas pontualmente como resultado de pressões por uma demanda social específica, como foi a greve dos professores no Rio de Janeiro, não seria esse um modelo de jornalismo a ser testado também pelos coletivos de comunicação, como a Mídia Ninja? A contribuição dos midialivristas nessa nova fase não passaria pela produção de grandes reportagens tendo como critério o interesse coletivo, mas com a colaboração do público e a mediação de jornalistas em prol da qualificação dessa produção? Um dos líderes do coletivo Fora do Eixo, em recente entrevista ao programa Roda Viva, afirmou que “pautas não nos faltam”. De fato, elas estão cotidianamente nas ruas e nas vielas, no campo e na cidade, para além das manifestações. É hora de construir essa agenda.
******
Marcio de Souza Castilho é jornalista e professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF)