Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O prazer de esculachar

Deus nos livre e guarde do pandemônio opinativo promovido pela gurizada fandangueira da internet, ou seja, os chegados a uma pirotecnia inconsequente. Se por séculos a humanidade permaneceu entrevada pela escassez ou falta de informação, subjugada na base da força e pela censura daí decorrente, não menos deletério – pelo caráter invasivo – parece ser o minimalismo cibernético entronizado hoje em dia por meios de comunicação cada vez mais onipresentes e influentes na vida das pessoas.

Até mesmo as coisas mais simples e de fácil compreensão vira e mexe são alvo de discussões e polêmicas, nas quais o bom senso e mesmo os princípios básicos de civilidade são frequentemente preteridos por um radicalismo gratuito e sem sentido. Esculacha-se pelo prazer de esculachar, a exemplo, por sinal, da onda de vandalismo aleatório que prospera em função da leniência das leis e da demagogia barata dos que preferem atribuir este e outros tipos de delitos ao ramerrão da exclusão e da desigualdade social. Ramerrão porque se formos esperar pela extirpação desses males para só então combater as anomalias, o problema da impunidade tende a agravar ainda mais o descontentamento geral, por conta do próprio acirramento de ânimos e espíritos que se dissemina livre e indiscriminadamente pela web.

O fato é que nada nem ninguém – que o digam os velhos ícones da MPB, virtualmente linchados em praça pública por conta da polêmica sobre as biografias – escapa ao furor contestatório e inquisitório que se alastra, quase instantaneamente, graças ao acesso livre e ilimitado aos mais diversos e sofisticados veículos de informação e interatividade. É o lado perverso do extraordinário avanço tecnológico que disponibiliza recursos que até a pouco tempo só se cogitava em obras de ficção, que potencializa a liberação dos instintos humanos mais primitivos e chulos, como a maledicência, a bisbilhotagem, para não falar de pornografia e outras baixarias. E aí o bicho pega, já que não há controle e muito menos pruridos no sentido de inibir manifestações que só não são mais chocantes porque nada mais parece chocar no mundo de hoje.

Novos paradigmas

É cômodo defender e cobrar por liberdade de expressão e pelo direito de protestar, antigas bandeiras que se juntam aos anseios por justiça e probidade político-administrativa no ideário democrático. Difícil é adequar e conciliar essas demandas num cenário em que se confunde liberalismo com libertinagem, em que se tomam liberdades sem respeitar a liberdade e as opiniões alheias, em nome de mélanges liberticidas que nada têm de democráticas. No caso específico das biografias, ainda que o desejável seja a dispensa de autorização do biografado, até pelo caráter controverso da matéria, há que se entender e respeitar a posição dos que, mesmo sendo figuras públicas, prefiram preservar a privacidade. Até mesmo porque é preciso conferir as credenciais do biógrafo.

Mesmo antipática, não se justifica a grita geral e a virulência com que se contestou a posição de Roberto Carlos, Caetano Velloso, Chico Buarque de Holanda e outros famosos contrários à liberação das biografias. Principalmente porque para todos os efeitos contam com o respaldo das leis brasileiras, que determinam a necessidade da concordância do biografado para a confecção da obra. Leis que agora tendem a ser modificadas, para atender um clamor midiático (se é que isso existe…) que não só constrangeu como coagiu os envolvidos a uma espécie de retratação pública, como a reticente entrevista de RC no Fantástico, em que se disse favorável à liberação das biografias desde que com ajustes a serem definidos por quem de direito. Evasivo mas pertinente, convenhamos.

Os eventos marcantes que se sucederam nos últimos meses não têm feito outra coisa senão evidenciar a sacralização da mendicidade e da mediocridade como artífices de uma realidade que foge aos padrões tradicionais, projetando novos valores que acentuam a ruptura entre as gerações, não só sob o ponto de vista comportamental e social, como profissional, vocacional, idealístico. Novos paradigmas vão sendo forjados, por conta do rebaixamento cultural, da degradação de costumes e vínculos familiares, condicionados por modelos que incentivam o hedonismo, o consumismo e outras excrescências. Modelos estes induzidos por veículos de informação que se locupletam com a banalização e frivolização de valores que delineiam o que o escritor Mario Vargas Llosa chama de civilização do espetáculo, em seu recente livro de ensaios sobre o tema.

Liberalismo caolho

Desalojada – por este e outros motivos – do papel institucional de ser o espelho e a caixa de ressonância da sociedade, nem o ecletismo agregado a mídia tradicional de hoje em dia serviu para que angariasse a desejada confiança e credibilidade. Não só pela falta de traquejo para lidar com situações anormais, descolados dos padrões rarefeitos do feedback cibernético, como pela constrangedora dificuldade para conciliar o discurso epistemológico com a anarquia – no sentido lato – que se alastra feito fogo em capim seco. Anarquia, pasmem, contemporizada e legitimada por conta de uma esdrúxula flexibilização conceitual do direito de expressão, sob o qual os maiores absurdos e desatinos são praticados e proferidos como se tal prerrogativa fosse uma espécie de salvo conduto irrevogável, e o que é pior: com os discordantes sendo taxados de obscurantistas e reacionários.

É espantoso como tanta gente importante que marca presença na mídia não se dê conta do anacronismo de certas posturas ancoradas em premissas ultrapassadas e até caducas, na medida em que desconectadas do efervescente e turbulento contexto que começa a tomar forma a partir de uma maior participação popular. Seja nas ruas como online.Desconexão que ignora que só há uma maneira eficaz de desatar o grande nó que mantém o país à mercê da violência e da impunidade: admitir que o liberalismo sem freio, assim como a democracia mal interpretada, não podem resultar em boa coisa quando as leis são frouxas ou não funcionam.

Ora, se o direito de protestar e botar a boca no trombone é sagrado, nada justifica que isso se torne um pretexto para o uso da violência, seja física ou verbal, como arma de convencimento e persuasão. Protestos que descambam para o confronto e a depredação indiscriminada perdem a legitimidade e seus autores não passam de delinquentes, e é isso que a imprensa e seus porta-vozes têm o dever de enfatizar, ao invés de por panos quentes por receio de botar o dedo na ferida ou por conta de um liberalismo caolho.

Politicamente correto

Se no início das chamadas jornadas de junho e julho até se desculpou o tratamento hesitante da imprensa, pega de surpresa como toda a sociedade, arrefecida a mobilização popular até então pacifica, não há porque contemporizar com a motivação visceralmente beligerante das ações que persistem. Ações, como já foi fartamente divulgado, orquestradas via redes sociais por grupos heterogêneos – jovens desajustados, descamisados, marginais e até entediados filhinhos de papai – cujo único propósito é promover baderna, depredações, confrontar a polícia e aterrorizar a população. Atos de verdadeiro banditismo, que como tal deveriam ser tratados, ao invés do ridículo discurso culpando a falta de políticas sociais, e o conformismo com o faz de conta promovido por leis que incentivam o virtual estado de guerra instalado há décadas no país. Pelo menos no número de baixas – mais de 50 mil assassinatos por ano, fora os que não entram nos índices oficiais.

Se nem por isso cabe defender ou justificar a repressão e a truculência policial sempre destacada nos noticiários, há que se colocar as coisas em seus devidos lugares, partindo do reconhecimento de que muitos dos excessos acabam sendo inevitáveis, por conta não só da ousadia dos manifestantes, que não escondem a disposição de enfrentar a polícia e depredar o que estiver pela frente, como pela falta de um preparo específico para lidar com esse tipo de situação. Em países mais familiarizados com distúrbios dessa natureza, como nos Estados Unidos e na Europa, há contingentes treinados e equipados especificamente para fazer frente a tais confrontos, e embora as baixas também sejam inevitáveis, ao menos a punição tende a ser desencorajadora.

Ao contrário daqui, em que sequer o enquadramento para delitos dessa natureza estão devidamente especificados no Código Penal, algo que as secretarias de segurança do Rio e São Paulo finalmente se dispõem a corrigir, com o anunciado encaminhamento de medidas no sentido não só de endurecer as punições como aprimorar um sistema de inteligência para prospectar esse tipo de movimento. Já a imprensa, por sua vez, não bastasse à recalcitrante crítica ao trabalho policial, é notório o pendor a embarcar em qualquer ação de apelo popular, ainda mais quando isso possa realçar a disposição de estar ao lado dos fracos e oprimidos. Ou do que é justo e legal, conforme a hipócrita ótica do politicamente correto. Daí nem sempre se preocupar em exercer suas funções de forma responsável e coerente. Afinal, é mais cômodo demonizar o trabalho policial e concomitantemente, glamourizar excrescências como os black blocs e contextualizar as ocorrências policiais sob o ponto de vista das vítimas.

Superficialismo e oportunismo

Se alguém morre numa ação policial, acidentalmente ou não, o que infelizmente faz parte do contexto de criminalidade descontrolada que vivemos, a versão que costuma prevalecer na mídia é a de que se tratava de um trabalhador, ou algum jovem inocente que deu o azar de estar no lugar errado, na hora errada. Se o sujeito não era exatamente um cidadão de bem, como na maioria dos casos, investigações nesse sentido raramente são destacadas, pois como se sabe, a polícia tem costas largas. Valores como ponderação e bom senso, essenciais para um desempenho jornalístico e intelectual que se preze, parecem ainda mais mitigados nesses tempos de bombardeio midiático/opinativo. Como a repercussão e a pressão são quase que imediatas, em função da interatividade das novas mídias, o apelo popular passou a ter um peso ainda mais forte no exercício jornalístico. Concessões impensáveis acabam sendo feitas nesse contexto, a dano da lisura e da verdade dos fatos, tornando ainda mais difícil distinguir o factual do tangencial, ou seja, a notícia maquiada que facilita o consumo.

Como no caso da comoção criada em torno do resgate dos beagles mantidos para pesquisas pela clínica Royal, mais um desses episódios em que a emoção falou mais alto que a razão, com a devida colaboração da mídia. Destaque e até matéria de capa de revistas importantes, como Veja, o assunto acabou sumindo dos noticiários tão rapidamente quanto apareceu, ainda mais depois que alguns dos cães subtraídos da clínica foram colocados à venda em anúncios nos quais se mencionava até a origem dos mesmos, para valorizar o produto. Sem falar em outro que foi simplesmente abandonado à própria sorte, possivelmente pela constatação de que era portador de várias doenças.

Tudo bem que isso não desmerece o trabalho e a mobilização de movimentos dessa natureza, embora sempre se possa perguntar por que outros animais bem mais maltratados pelo homem, até para consumo, não mereçam a mesma atenção. O que não se justifica são ações intempestivas e ilegais, que podem resultar em consequências sérias, como processos e até prisão, como aconteceu com os ativistas do Greenpeace na Rússia, entre os quais uma brasileira, sujeita a cumprir pena de seis anos num país em que as leis são sabidamente rigorosas. Da mesma forma como são contraproducentes as manifestações que degeneram para a violência, por fugirem do foco, mesmo os movimentos de cunho humanitário e ecológico não tem carta branca para afrontar as leis e a ordem pública.

Em suma, mais irresistível que seja o impulso de aderir incondicionalmente a movimentos e causas eivadas de boas intenções, que pelo menos a imprensa e a mídia em geral sejam menos superficiais e oportunistas, abordando todos os aspectos sem se curvar as imposições mercadológicas e a ditadura do politicamente correto.

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Ivan Berger é jornalista