Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A evolução dos textos e os novos leitores

Dos antigos pergaminhos à tela dos modernos computadores, nós leitores sempre nos defrontamos com muitos e diferentes desafios. Tanto no suporte no qual é feita a leitura, como na forma com que se lê.

Na escrita antiga, nem as palavras nem os enunciados eram separados. Até cerca do século 8, quase não havia sinais de pontuação. A leitura do texto assim produzido tinha de ser feita em voz alta para que se pudesse perceber o sentido do que estava escrito.

Nesse sentido, o codex, precursor do livro atual, foi uma revolução. Copiado a mão, apresentava certas marcas que diminuíam a possibilidade de erros – por exemplo, a maiúscula vermelha, de onde se originou o termo rubrica (de ruber, vermelho em latim). Naturalmente esse leitor já não é o mesmo dos pergaminhos. O modo como ele percebe o texto e as competências que aciona no ato da leitura são muito diferentes. Como afirma Roger Chartier, especialista em história do livro e da leitura, ao longo do tempo a cultura escrita claramente estabelece uma forte vinculação entre suportes, categorias de texto e formas de leitura. Essas últimas são evidentemente afetadas e até determinadas pelas relações estabelecidas entre os dois primeiros elementos. Com a separação das palavras e a introdução dos sinais de pontuação, a leitura não precisa mais ser feita em voz alta e o leitor pode decifrar com mais facilidade as palavras e deter sua atenção nos sentidos implicados no que lê. As convenções de parâmetros paratextuais (número de páginas, nota de rodapé, espaços em branco) reforçam o livro como objeto tecnológico, o que nos permite acessá-lo de forma intuitiva.

O final do século 20 inaugura uma nova era na comunicação. O livro, que desde a prensa de Gutenberg sustentava-se como o mais importante meio de transmissão de conteúdo, tem seus textos tragados pela linguagem digital. A transposição do papel para as telas do computador implica numa nova forma de distribuir e absorver informação.

Se, como nos diz Chartier – e com ele vários teóricos da linguagem –, as formas de leitura são afetadas pelo suporte, o formato eletrônico cria novos leitores e novas formas de leitura. Ele rompeu as fronteiras do campo bidimensional do papel e abriu as possibilidades do espaço por onde o leitor pode buscar informações, dividir opiniões, compartilhar ideias.

Se o hipertexto já tornou muito mais complexo o ato de ler, a hipermídia, ao aliar à palavra as possibilidades da imagem, do som, da imagem em movimento e de todas essas linguagens conjugadas, acrescenta necessidades novas e inéditas à formação do leitor. Até porque já não é possível falar em leitor. No espaço líquido das hipermídias, o leitor transforma-se em um navegador. Nômade, pode estar sempre em movimento. Pode deslocar-se virtualmente e assim ter acesso a todos os lugares, mas pode também deslocar-se espacialmente e ficar nos mesmos territórios por onde lhe interessa trafegar.

Classificando leitores

Lucia Santaella, pesquisadora em cultura digital, ao se referir à internet identifica três tipos de leitores: o navegador errante, o internauta detetive e o previdente. O internauta errante se movimenta orientado principalmente pela adivinhação, por inferências; navega como quem brinca, explorando as possibilidades da hipermídia. Esse tipo de internauta não teme errar e se mostra inclinado a criar ao percorrer territórios desconhecidos, sem a âncora da memória. O internauta detetive adota a indução como estratégia de busca, marcada por avanços, erros e autocorreções. Aprende com a experiência e, no seu processo, transforma as dificuldades em adaptação. O internauta previdente tem perfil de um leitor/navegador mais experimentado. Segue a lógica da previsibilidade e por isso consegue antecipar as consequências de suas escolhas. A atividade mental mestra do previdente é a da elaboração: adquiriu a habilidade de ligar os procedimentos particulares aos esquemas gerais de navegação que internalizou. Sua navegação está orientada por uma memória de longo prazo que evita riscos.

Esses perfis descritos por Santaella dão a dimensão das habilidades a serem desenvolvidas na formação desse novo leitor, da diversidade de perfis que cada um pode assumir nas diferentes situações de interlocução em que se coloca. Inferir, organizar dados, escolher os métodos mais adequados de navegação em função de diferentes interesses, objetivos ou inclinações equivale a desenvolver competências complexas e absolutamente necessárias no mundo contemporâneo. Esse internauta dialoga, em alguma medida, com o navegador que atravessava o desconhecido mar, mas desloca-se por outros perigos para os quais precisa ser formado: diante de tantas possibilidades, como selecionar as que garantem qualidade? Como escolher estratégias adequadas às finalidades de cada interlocução, de cada trilha de navegação? Como identificar os portos onde vale a pena ancorar?

Além desses perfis, que se definem em função das possibilidades e dos objetivos de navegação, outra palavra identifica substantivamente esse novo leitor: interação. Diante das aberturas que o formato eletrônico disponibiliza, o leitor se pretende cada vez mais autor na medida em que interfere na produção dos conteúdos comentando, selecionando ou complementando ideias, informações, opinando, reafirmando ou contrariando posições.

A educação e o design dos novos livros

A escola tem papel fundamental na formação desse novo leitor. Não exclusivo, mas decisivo no encaminhamento dessas reflexões e na oferta de oportunidades práticas de se exercitar nas muitas – e novas – formas de navegação. Daí a necessidade de incluir nas escolas o trabalho pedagógico em ambientes de hipermídia de modo cada vez mais cotidiano. Formar leitores implica trabalhar com uma linguagem nova; e trabalhar com uma linguagem nova implica trabalhar com novos modos de pensar e estabelecer relações cognitivas. Esta talvez seja uma dificuldade a ser enfrentada pela educação em um momento em que o novo convive com o antigo, em que essas novas formas de pensar estão em constante construção. Também coloca novos desafios para a criação de livros para leitores desse mundo novo que se anuncia.

No campo do design, em particular, é preciso considerar as possibilidades de organização dos espaços de informação que podem atender às tantas possibilidades de navegação que o hipertexto e a hipermídia disponibilizam. Essa organização tem sido chamada por alguns teóricos do design de arquitetura informacional. O desenho do hipertexto considera as possibilidades associativas que se aproximam do modo como o cérebro funciona – por associações que podem abrir e fechar janelas, remeter a outras ideias com as quais se comunicam por contiguidade, oposição ou complementaridade, num desenho de formas rizotônicas. Diferentes tipos de texto pedem organizações diferentes. A possibilidade de se transitar por diversas plataformas, abertas à interação e indexação de conteúdo, faz do sistema hipermidiático um projeto em constante expansão. O design assume um caráter participativo, uma vez que só quando colocado em contexto de uso traz a tona suas principais funcionalidades. O resultado não pode mais ser visto como um produto, mas sim como uma produção.

É verdade que textos com alto grau de coesão – como são, por exemplo, os argumentativos –, cuja construção de sentido exige uma leitura sequencial, mostram-se menos favoráveis às associações que os focados, por exemplo, na informação, que pode se desdobrar em muitas outras informações de outros campos de sentido. O design deve atender a essas diferentes possibilidades e limites do hipertexto.

O mesmo vale para a hipermídia. Por seu caráter movente, fluido, submetido às intervenções do usuário, as estruturas da hipermídia constituem-se em arquiteturas líquidas. Como diz Santaella, o design “deve pensar as possibilidades de interação com os nós e nexos de um roteiro multilinear, multissequencial, multissígnico (palavras, imagens, textos, documentos, sons, ruídos, músicas, vídeo) e labiríntico que o usuário, ele próprio, ajudou interativamente a construir”.

O design de livros eletrônicos, bem como das versões digitais de jornais e revistas, deve considerar, portanto, a multiplicidade de roteiros que o novo leitor/internauta pode percorrer, as possibilidades de cada situação comunicativa, de ambiente, assim como os canais de interação. E será tão mais eficaz quanto mais invisível parecer. A orientação pelas infovias, pela qual o design deve se responsabilizar, deve produzir segurança, permitindo ao internauta uma navegação ajustada aos alvos pretendidos.

Os desafios propostos por esta mudança no modo de pensar e comunicar trazem a responsabilidade, a cada um de nós, de participar e reformular o design, que só se efetiva a partir da apropriação. Cabe aos novos leitores transitar e criar através dessas infinitas possibilidades de conexão.

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Hubert Alquéres é vice-presidente da Câmara Brasileira do Livro, foi presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (2003-2011); Clayton Policarpo é arquiteto, mestrando em Tecnologias da Inteligência e Design Digital e especialista em Estéticas Tecnológicas, PUC-SP, atua como designer na elaboração e execução de projetos gráficos e dispositivos hipermidiáticos; Maria Tereza Rangel Arruda Campos é editora, professora de Português, consultora em educação, autora da coleção didática de português para ensino médio “Vozes do mundo” e faz mestrado na PUC-SP na área de Linguística Aplicada