Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Rouba-tempos

Agostinho de Hippo (354-430), que alicerçou com suas ideias o edifício filosófico do cristianismo, admitia: “Que é o tempo? Se ninguém me pergunta, sei o que é. Mas se tiver de explicá-lo a quem me pergunta, não sei.” Nem por isso deixaria de tentar: “Existem três tempos: o tempo presente das coisas passadas, o tempo presente das coisas presentes e o tempo presente das coisas futuras.” (“Confissões”, capítulo 20, livro 11.)

Pensadores de todas as áreas do saber têm partilhado tanto a perplexidade quanto a percepção de Agostinho. Pouco aprenderam além do que lembra o provérbio: “Tempus fugit”. Este é síntese lacônica de certo verso de Públio Vergílio Maro (70 a.C.-21 a.C.): “Sed fugit interea, fugit irreparabile tempus, singula dum capti circumvectamur amore”. (“Mas entrementes foge o tempo irrecuperável, foge lépido enquanto percorremos ponto a ponto nosso círculo encantado.”)

Note que, para Vergílio, o tempo não meramente passa, mas foge, escapa a nosso impulso irracional de retê-lo. Aflição da beldade que recebe do espelho a notícia do primeiro fio branco no cabelo glorioso. Adeuses. Digitação furiosa do repórter oprimido pelo iminente fechamento da edição. Negociação abjeta por mais prazo naquele confessionário do gerente de banco.

Tudo que sábios já ensinaram sobre o tempo não bastou para nos consolar do imperioso “fugit”. O tempo pode ser uma dimensão do espaço, como Einstein garantiu, mas sem explicar a crucial diferença: no espaço você pode avançar ou recuar; já no tempo, não. Assim, com tanta consciência de ser ele irreversível e exíguo, empenhamos o espírito em poupá-lo, esticá-lo, alargá-lo e ampliá-lo como fazemos com o espaço, certo?

Inovação tecnológica

Hum, sim e não. Procrastinar é perene tentação. Que, como todas as outras, nos sujeita a pecado e remorso, quando não nos abeira da perdição. Já o jogo limpo, interdito a adiamentos, inspira propósitos e resoluções de futura parcimônia em nossos gastos de tempo, não é? Pode ser, pode ser.

Mas –e toda essa gente em transe diante da tela do celular, dedilhando tão nervosamente o teclado? E os que surfam a internet na compulsão “voyeurista” de pescar fofocas circulantes na vida de celebridades, parentes, amigos, inimigos, não importa quem? E as mulheres (ok, homens também, embora menos, reconheça) que se revezam nas narrativas fictícias ou verídicas de “causos” dramáticos, a maioria deles ocorridos em famílias, motéis e hospitais? E os que usam o correio eletrônico para repassar links e clipes muitas vezes mentirosos do YouTube, ou comentários, ou propaganda, ou qualquer outro criativo rouba-tempo?

Claro que, no fluxo fenomenal da explosão internética, nem tudo é supérfluo, intrusivo, redundante ou malicioso. Servir caçadores de cabeça do comércio é discutível prioridade do Google, mas não chega a comprometer o gênio de seus criadores. Os quais, afinal, abriram a mais ampla e diversificada janela enciclopédica da história. Um dos problemas de muitos rouba-tempos, aliás, é justamente esse, serem interessantes.

Como sanar nosso despreparo para lidar com tão formidável avalanche? Na década de 1970, o perspicaz sociólogo Alvin Toffler (1928-) previu a iminente incapacidade biológica de nos adaptarmos, no plano social, à aceleração da inovação tecnológica. Mais recentemente ele concluiu: “Os analfabetos do futuro não serão os que não souberem ler ou escrever. Serão os que não puderem aprender, desaprender e reaprender.”

Poderia acrescentar: como os que desperdiçam tempo na internet.

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Aldo Pereira, 81, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha de S.Paulo