Quem sabe dizer com precisão quais grupos sociais e organizações forneceram os contingentes que, numa espiral de participação crescente, encheram as ruas do Brasil em junho e julho de 2013 com impressentida rebeldia? O Movimento Passe Livre em São Paulo seguiria se reforçando ou tenderia ao refluxo caso não tivesse havido uma interferência inusitadamente violenta da Polícia Militar numa das passeatas? A PM-SP agiu assim por despreparo ou deliberadamente (estimulada pela grande imprensa, que demonizou os manifestantes)? Em que medida a fúria popular se dirigiu contra o sistema político vigente ou revelou descrença no próprio regime democrático? Pesou mais no apoio da população aos manifestantes o grito de criaturas oprimidas ou a convicção de que, em vista dos avanços obtidos até aqui, é possível conquistar mais?
Pesquisadores sérios tentarão dar a essas e muitas outras perguntas respostas calcadas na melhor documentação disponível. Eles encontrarão boa parte dela em jornais e revistas. Os cidadãos comuns construirão e trocarão entre si percepções alimentadas e moldadas pelas mídias jornalísticas que os alcançam, principalmente televisão e rádio.
Quanto mais os relatos forem distorcidos, mais risco correrá a sociedade de ser conduzida a apoiar a perpetuação disfarçada de um statu quo indesejado ou, pior, o retrocesso. Se triunfar o modelo proposto pelo dois blocos de forças principais que travam hoje a batalha das ideias – governistas e mídia oposicionista –, os brasileiros ficarão parecidos com a parcela dos americanos que “só segue as notícias com as quais concorda” (“Rede de notícias ‘ideologizadas’ bate a CNN em audiência“, Folha de S. Paulo, 29/11). Um paroxismo de alienação.
Em busca de lucidez
O pior que as distorções podem causar é uma compreensão falseada dos nexos entre “causas” e “efeitos”. Por exemplo, há quem veja nas jornadas de junho e julho apenas agitação feita para prejudicar a imagem de governantes, movida pela lógica das disputas eleitorais que estão no calendário de 2014. Essa “dedução”, face enganosa da “sabedoria da visão retrospectiva”, leva a ignorar o grau e a extensão da insatisfação popular manifestada e, portanto, a fragilizar o entendimento de suas razões e a busca de respostas para ela.
Mais ainda: a tendência a querer “amarrar” tudo na narrativa decorre de uma tentativa inútil de ignorar o papel do acaso na História. Conviver com a presença do acaso é estar aberto ao novo, ao que não foi previsto, não foi pensado. Personagem hoje pouco conhecido, Palmiro Togliatti (1893-1964), um dos grandes do século 20, recomendava que não se concebesse a História como uma “procissão triunfal”.
Instrumento de democratização
Uma narrativa adequada dos fatos pela mídia jornalística – ainda que sujeita a escolhas prévias de pautas e mudanças bruscas de rumo, e submetida a vieses de edição – é indispensável à democratização da política, à redução das desigualdades sociais e à adoção de políticas públicas que façam o país ingressar em novo patamar de desenvolvimento, cortando os laços ainda vigorosos com o passado colonial escravocrata.
Foi esse o ponto de partida para o estabelecimento de uma parceria entre o Observatório da Imprensa, o Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (Ippri) da Unesp e o Instituto CPFL | Cultura, que se traduzirá na realização do projeto “Ruas em Movimento – Mídia, Cidadania e Política”, série de encontros entre jornalistas e desses com cientistas sociais, políticos, servidores públicos, representantes de entidades e movimentos – todos aqueles que, em regime democrático, têm a responsabilidade de somar suas mentes e vozes à discussão pública dos rumos do país.
O primeiro encontro se realiza na terça-feira (3/12), em São Paulo. Foram convidados os jornalistas Alexandre Machado (TV Cultura), Bruno Paes Manso (O Estado de S.Paulo), Laura Capriglione (Folha de S.Paulo), Matheus Pichonelli (portal da Carta Capital) e Yan Boechat (portal da IstoÉ). Os debates prosseguirão em 2014. O grupo organizador do “Ruas em Movimento” inclui, pela Unesp, Claudio França, Genira Chagas, Marco Aurélio Nogueira e Milton Lahuerta; pelo Instituto CPFL | Cultura, Mario Mazzilli e William Sodré; pelo Observatório da Imprensa, Mauro Malin e Sandra Muraki. O ilustrador José Américo Gobbo colabora no projeto.
Tema constante
Desde o primeiro momento, o exame da qualidade da cobertura da revolta popular de junho e julho esteve presente nas páginas deste Observatório, traduzida em numerosos textos e na transcrição de um debate promovido em 2 de julho pela ONG Conectas Direitos Humanos, pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e pela Oboré (ver “Ativismo põe em xeque narrativas oficiais“). O Observatório da Imprensa na TV dedicou ao tema os programas de 25/6, 30/7, 17/9 e 5/11.
Os debates do “Ruas em Movimento” serão publicados nos sites das instituições parceiras, maneira de ampliar uma reflexão alimentada e balizada por trabalhos com mais fôlego e ambição do que reportagens e textos isolados de análises. Entre esses trabalhos podem ser citados os livros As Ruas e a Democracia, de Marco Aurélio Nogueira, Choque de Democracia – Razões da Revolta, de Marcos Nobre, #Vem Pra Rua, de Piero Locatelli, O Brasil nas Ruas, compilação de reportagens feita pelo O Globo, os três últimos na forma de e-books, e Cidades Rebeldes – Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, publicado por Carta Maior e Boitempo Editorial, obra coletiva.
Há em todos preciosas informações que ajudam o leitor a se manter mais próximo da realidade dos fatos. Insista-se: é universal a propensão a fabricar convicções alimentadas por informações inexatas aceitas por coincidirem com o que cada um gosta de ouvir e que, portanto, reforça suas crenças.
Antes, durante, depois
O objetivo do processo de debates iniciado pelo Observatório, pelo Ippri-Unesp e pelo Instituto CPFL | Cultura é aprofundar, alargar e enriquecer as percepções dos participantes – e do público a ser atingido com sua disseminação – sobre como a mídia jornalística forneceu à sociedade os sinais antecedentes, a descrição dos fatos e as subsequentes análises e informações relativos aos acontecimentos de junho e julho de 2013.
O ponto de partida incontornável para a melhor compreensão do processo é o trabalho da mídia jornalística, cuja fidedignidade foi desde o primeiro momento posta em questão, e o é até hoje, como, por exemplo, em recente entrevista dada ao site JornalismoB por Rodrigo Brizola, integrante do Bloco de Lutas pelo Transporte Público de Porto Alegre (“Se conseguirmos dialogar com a massa, não vai ter Copa“):
“O trabalho que os vereadores e que a mídia fizeram depois da ocupação da Câmara [Municipal da capital gaúcha] foi um trabalho de desinformação, de manipulação do que aconteceu na ocupação da Câmara. Quem esteve presente na ocupação da Câmara percebeu oito dias de criar experiências de um modelo de democracia direta e de autogestão.”
Ao mesmo tempo, ter tomado conhecimento dos fatos pelas diferentes mídias, as “tradicionais” e as emergentes, permitiu a uma observadora como Eliane Brum fazer na edição digital brasileira do El País uma ponte entre as prisões durante as passeatas e as dos condenados do mensalão (“Dois Josés e um Amarildo“):
“Para a juventude que protestou – e em vários momentos expulsou das ruas os militantes de partidos, incluindo os do PT –, os presos políticos passaram a ser os manifestantes levados para a cadeia pela polícia do Estado democrático.”
Vai esquentar
Marc Bloch escreveu que “a ignorância do passado não se limita a prejudicar o conhecimento do presente, mas compromete, no presente, a própria ação” (Apologia da História ou O Ofício do Historiador, Zahar, 2001). Entender tanto quanto possível o que aconteceu em junho e julho é indispensável para pensar presente e futuro.
André Singer (“Vai esquentar“, Folha de S. Paulo, 30/11), a propósito da crítica ao que seriam insuficientes cortes de gastos públicos, e criticando ele mesmo a aceitação desses argumentos pela presidente Dilma Rousseff, com prejuízo específico para as possibilidades de Fernando Haddad fazer frente às urgências paulistanas, diz que “os acontecimentos de junho começaram na capital paulista, com o sentido geral de reivindicar mais aplicação social por parte do Estado, em particular no transporte público”.
Singer refere-se depois a outras cidades que entraram em ebulição. Diz que Dilma “deixa sem válvula de escape a panela de pressão urbana.” E prevê que, “se nada mudar, a chapa vai ferver no ano da Copa, e não apenas pela intensidade das disputas dentro dos estádios, mas, sobretudo, pelo calor dos conflitos ao redor deles”.
Sem válvulas de escape, os governos recorrerão ao “remédio” de sempre, a polícia. O ciclo de debates “Ruas em Movimento” prosseguirá em 2014, o que permitirá o confronto de visões sobre a marcha dos acontecimentos não apenas passados, mas também presentes nesse futuro próximo. E, quem sabe, bem além dele.