Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A memória apagada de uma guerra suja

Um ano e meio após ter sido lançado, o livro Memórias de uma guerra suja, em que o ex-delegado do Dops do Espírito Santo, Cláudio Guerra, conta como assassinou dezenas de militantes da esquerda brasileira nas décadas de 70 e 80 (entre um total de 100 mortes), estranhamente desperta, por parte da imprensa, muito menos investigações do que mereceriam suas dramáticas e assertivas revelações feitas aos jornalistas Rogério Medeiros e Marcelo Netto, coautores da obra.

O livro foi publicado para que a memória fosse contada. Não para que fosse, como está sendo, apagada. O assassino confesso admite ter planejado e operado atentados contra o processo de redemocratização dos anos 80 no Espírito Santo, Rio de Janeiro (inclusive no caso Riocentro), São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco e Bahia.

Soldado civil de espírito militar, Guerra obedeceu cegamente os coronéis dos DOI-Codi, em especial Freddie Perdigão, no Rio. Até em Angola, por ordem dos militares, ele teria feito um atentado a bomba. Após ter sido preso por crimes comuns na década de 80, garante que se arrependeu na cadeia, virou pastor evangélico e sentiu necessidade de contar o que fez.

Ainda que em alguns momentos a fala, aparentemente arrependida, de Guerra pareça contrainformação, por si só a riqueza de detalhes, o conhecimento da dinâmica de funcionamento dos sistemas de repressão política financiados por empresas, a menção à participação da CIA e do Mossad no treinamento de torturadores e assassinos a soldo do Estado brasileiro (e de bancos, de empresas de transporte, empreiteiras…) e o fato de em nenhum ter-se recusado de citar nomes de gente envolvida com a caça aos esquerdistas torna a confissão do carrasco merecedora de muito mais atenção da imprensa – em várias vezes acusada de conivência com as perseguições políticas denunciadas.

Jornalismo e coragem

Em entrevista ao Observatório da Imprensa, após o lançamento do livro, Guerra chega a reclamar da inocência das perguntas feitas a ele por procuradores do Ministério Público, mas elogia as investigações da Polícia Federal a respeito de suas denúncias.

Também disse que há muitos outros “Cláudios Guerras” dispostos a falar e que bastaria serem convencidos – e isso ele também disse, inclusive, em depoimento não divulgado, à Comissão Nacional da Verdade.

O relativo silêncio da imprensa corporativa sobre o livro é compreensível – embora não seja defensável. Tem a ver com o seu apoio à ditadura empresarial e militar de 64. Em um e em outro caso, o que não se pode deixar de fazer, hoje, é investigar e praticar o bom jornalismo, com a coragem que só a história mostrará ser indispensável ao Brasil.

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Carlos Tautz, jornalista, é coordenador do Instituto Mais Democracia – Transparência e controle cidadão de governos e empresas.