Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Kant não lia jornais

Jamais podemos conhecer a realidade em si, mas somente a realidade como fenômeno. A tese de Immanuel Kant (1724-1804) fala, em outras palavras, que nunca saberemos o que acontece no mundo realmente, pois só podemos apreender seus efeitos estéticos naturais. Tudo está encoberto por uma cortina de fumaça e jamais poderemos saber o que acontece por detrás da sala de espelhos do universo.

Certamente, Kant não lia jornais e os jornalistas não leram Kant. A imprensa repete obcecadamente que a sua missão é retratar os fatos e, por isso, segundo a concepção clássica, o jornalismo deve ser apenas um retrato falado da realidade. A cantilena é fundamental para que a própria imprensa acredite nela. As notícias devem fotografar a realidade, não devem discutir se a realidade é esta ou aquela ou se existe este ou aquele caminho para a verdade absoluta. O resultado é que a “crítica à razão jornalística”, desenvolvida na academia, sobre o exercício dogmático da construção social da realidade, aparece transfigurada como prática acrítica e funcional nas redações assépticas da modernidade tardia. Para os jornalistas, a realidade é, a princípio, o fato, defumado de forma objetiva, neutra e imparcial, descrito pelas mãos dos tabeliões da informação.

Esta dissociação entre teoria e práxis esquarteja a verdade e, desdenhando Kant, leva a uma redução epistemológica que ignora toda a estruturação da realidade e sua dicotomia entre fenômeno e factibilidade para se deitar na matemática fácil das sensações e das percepções pós-modernas.

Mosaico epistemológico

Enquanto toda a filosofia trabalha para refinar o nosso conhecimento da realidade, o jornalismo utilitarista tornou-se o sistema “filosofante” que trata de afirmar o imperativo categórico da objetividade. Com isso, o jornalismo renuncia à verdade das coisas-mesmas e seu pêndulo dialético entre a coisa-em-si e a coisa-para-si, para se agarrar ao álibi transcendental do realismo natural e, com isso, poder justificar suas diabruras semânticas.

Esta atitude de tratar a realidade de maneira operacional até seria razoavelmente aceitável se a imprensa seguisse coerentemente seus dogmas objetivos. Afinal, os cientistas, tidos como os oráculos contemporâneos da verdade moderna, também praticam a objetividade empírica e não sofrem críticas pelo seu trabalho. A tradição científica segue cegamente os postulados da filosofia comteana e durkheimiana e, por isso, ao menos, sabe de qual lado da verdade ela está. Não interessam os racionalismos ou os criticismos de toda natureza. O positivismo científico só quer saber como funciona a realidade nos seus efeitos empíricos. O que está debaixo das aparências não é um problema da ciência.

Assim, se a imprensa buscasse sustentação metafísica para suas criações, a sociedade poderia compreender o tipo de verdade que ela recebe todos os dias. A questão, contudo, é que a imprensa não leu Kant e a metafísica não rende manchete. Por isso, ao invés de defender o mito da objetividade, da imparcialidade e da neutralidade, como a grande verdade prometeica do jornalismo, as páginas da imprensa mundial acabaram transformando-se num mosaico epistemológico que mistura as teorias do conhecimento filosófico com a episteme pseudojornalística.

Objetivismo e relativismo

São tantas as teorias do conhecimento acotovelando-se no mundo jornalístico, sem que a própria mídia se dê conta disto, que a realidade fotografada pelos jornais mais parece um borrão sobre os fatos do que uma leitura objetiva da realidade.

Existem talvez, pelo menos, umas cinco ou seis estradas do conhecimento entre a verdade dos fatos e o que a imprensa noticia. Não são nem estradas paralelas ou roteiros que caminhem para um ponto convergente. São parte do grande faroeste teórico que vive o homo jornalisticus, tão perdido quanto a verdade que os jornais apresentam e o entendimento que os leitores têm sobre o que deveria ser a expressão objetiva da realidade.

O objetivismo, mais conhecido como ceticismo objetivista, nascido com Descartes, Comte e Durkheim, é o método de conhecimento empregado na produção da notícia. O objetivismo, como dissemos, tem o papel de retratar os fatos tão como eles são e não se desviar deste caminho. O relativismo, nascido com Protágoras, é o principal caminho teórico, embora de maneira irrefletida, que pauta a percepção dos jornalistas sobre o mundo. Como Spengler bem demonstrou, o cidadão moderno ou pós-moderno, dentre eles os funcionários da informação, enxergam os fatos ou os fenômenos como uma grande névoa turva e disforme sobre a totalidade dos acontecimentos. Não existe mais crença na existência de uma verdade absoluta ou universal, sendo tudo apenas evidência e probabilidade sobre a realidade e a verdade.

A receita do melhor dos mundos

O dogmatismo, por sua vez, tornou-se a principal bandeira gnosiológica dos mecenas da informação. Não importa se o mundo, os acontecimentos, os fenômenos e os homens sejam emanações do grande teatro universal da realidade. Para os dogmáticos, a verdade existe e é incontestável. As manchetes, os leads e as notícias, tornaram-se doutrinas estabelecidas, inquestionáveis e inquebrantáveis, posto que têm sempre a procuração legítima de representar a realidade. Por isso, os mercadores da notícia não discutem ou refletem sobre o mundo. Eles apenas apresentam a informação, que é verdadeira apenas por ser informação.

O pragmatismo, cujo expoente maior foi Nietzsche, representa o mecanismo de produção da máquina industrial jornalística. Os pragmatistas não se interessam em refletir sobre os processos, os efeitos ou os porquês da notícia. O homem, afinal de contas, segundo esta perspectiva, não é um ser que nasceu para pensar as questões da realidade, mas, antes de tudo, para viver a vida intensamente. O que importa, com isso, é produzir informação e colocá-la industrialmente nas mãos dos leitores.

O epicurismo, por fim, parece ser a grande estratégia do marketing filosófico dos capatazes da informação. Presa ao moralismo infinito que domina a essência dos atos humanos, o epicurismo jornalístico busca o fim último da felicidade integral, seja ela através da produção ou do consumo dos jornais, ou pela leitura ilusória ou realista dos acontecimentos do mundo. Neste sentido, a meta da imprensa é sempre buscar cumprir a receita do melhor dos mundos de maneira cotidiana e mitigada, de preferência que seja ela um bom elixir de alegria e prazer para todos os personagens que atuam no universo da informação, em ambos os lados do balcão.

Mundo urgente e burocrático

Não se pode negar que estas teorias não são seguidas fielmente e nem mesmo são encontradas onde normalmente se espera encontrar. A dialética entre o conhecimento e a ignorância permite que apareçam aqui ou ali notícias relativistas, jornalistas dogmáticos e jornais objetivistas. Podem ocorrer casos de leads epicuristas, jornalistas pragmáticos, jornais relativistas e leitores dogmáticos.

Os caminhos da verdade apresentam sempre estranhas formas de revelação num mundo sempre tão urgente e burocrático. Além disso, não é comum que exista ou se encontre relação muito próxima entre conhecimento e jornalismo e, por isso mesmo, não é muito normal que se espere reflexão e crítica num mundo premido pela urgência, pelo frenesi, pela hiper-estimulação e pelo êxtase da informação e da comunicação.

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Leandro Marshall é professor universitário, doutor em Ciências da Comunicação, pós-doutor em Sociologia, mestre em Teorias da Comunicação e especialista em Filosofia